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Cata-Ventos: Greta Thunberg e as Discodocas da Devesa

Costa Alves - 04/11/2021 - 9:41

Acabava de sair do Cine-Teatro Avenida de Castelo Branco. Tinha assistido ao filme “I Am Greta”, assim mesmo intitulado por alguém que não deve gostar de fazer traduções para português. Éramos três pessoas, três, sentadas numa plateia com 408 lugares. Aquela vastidão despovoada dava que pensar e pensar. Mas, enfim, toca a entrar no mundo de Greta Thunberg em que este filme-documentário, realizado por Nathan Grossman, nos quer envolver. O mundo de uma rapariga que, em 2018, com 15 anos, se fixa em frente do Parlamento sueco, solitária, sentada no chão ao lado de um cartaz que anunciava “Greve à Escola pelo Clima”. Era uma sexta-feira de agosto. As ondas de calor e os incêndios florestais, que nesse ano atingiram, incomuns, os países nórdicos, pintavam um quadro de grande preocupação. Todas as sextas-feiras que se seguiram foram assim. Estava determinada e, gradualmente, deixou de estar sozinha; boa parte do mundo quis estar com ela.
Inesperadamente, eram adolescentes das escolas secundárias que demonstravam a sua aflição com o estado do planeta e lideravam a chamada de atenção para uma problemática a que alguns de nós se devotavam há mais de 25 anos. Fizemo-lo sem a necessária eficácia, enfrentando obstáculos de várias naturezas que interesses e poderes instalados interpunham aos ditames da ciência.
Mas, não eram os jovens que há muito esperava ver saltar: os estudantes do ensino superior. Aqueles que estão mais próximos de caírem nos alçapões da precariedade e de futuros de mal-viver. Aqueles que deveriam interrogar-se, interrogar o mundo e movimentar-se. Estudantes do ensino superior que, nos anos de 1960 e até ao 25 de Abril, fizeram a vida negra à ditadura do Estado Novo. Agora não sabem o que querem e não consigo entender. Não têm desejo nem movimento.
Também me perguntava onde se encontravam os miúdos que se manifestaram há dois anos nas ruas da cidade. Guardo, para nunca esquecer, também o entusiasmo dos meninos e meninas de bibes amarelos da pré-primária. Os pais onde estarão? A plateia do Cine-Teatro esperaria que não fôssemos apenas três.
Atravessava o, também despovoado e não iluminado, Campo da Devesa e apercebo-me de grande agitação à volta de bares e cafés daquela fileira onde antes da intervenção do programa Pólis se perfilavam as Casetas. Agora, há quem as nomeie como “Docas”, um topónimo sem relação com qualquer realidade albicastrense. Na verdade, aquela imensidão empedrada não atrai passos nem encontros, quanto mais crianças e brincadeiras e convívio e lazer. Recordo a crónica no Jornal de Notícias que Manuel António Pina dedicou ao “crime urbanístico [no Porto] que foi a destruição da Avenida dos Aliados e a sua substituição por uma espécie de Tiananmen monocórdica e ‘sizenta’, um inóspito terreiro com um tanque no meio”.
Tinha-me desviado do caminho de casa para me aproximar do barulho. Música bombeada, vultos a trepidar, copos e garrafas nas mãos de equilíbrios instáveis. Lembrei-me da Covid e nenhum cuidado transpirava. Dezenas, talvez mais de uma centena, a enfrascarem-se em jogos de dança sem dança. Ritualizavam o esquecimento dos problemas e das incertezas. Rapazes e raparigas que, daqui a um, dois, três anos conhecerão as agruras de tentarem viver, com independência, um projeto de vida. Rapazes e raparigas de mais uma geração batida que não quer aprender com o exemplo de Greta Thunberg e lutar pela vida de um futuro comum. Não era assim que respondíamos no tempo da ditadura.

mcosta.alves@gmail.com

COMENTÁRIOS

JMarques
à muito tempo atrás
O pensamento narrado nesta escrita é o esperado de quem tem cérbero, mas os que se enfrascavam aquela hora no Campo da Devesa, terão qualquer coisa no lugar do cérebro, mas cérebro, parece que não terão.