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Crónica: A Debita Nostra CCXXVII

Luís Costa - 25/01/2024 - 9:30

"No entanto, a procura do prestígio pela despesa parece ter mudado de significado. Outrora, quando um notável oferecia ao povo um ‘bodo’ festivo ou financiava sozinho uma ornamentação dispendiosa, tratava-se de confirmar num ‘potlatch’  a sua dominação e a dependência dos outros para com ele, conseguia pela exuberância do dom.” (Pierre Sanchis, 1983, “Arraial Festa de um Povo – as romarias portuguesas”, pp. 320-321).
Dificilmente se poderá assumir a democracia, como a forma mais conseguida de regulação das relações de poder, sem que ela deixe de ser vista como uma fórmula abstrata, universalmente replicável, por onde aquelas relações podem fluir sem a melhor consciência dos cidadãos (DEBITA NOSTRA CCXXVI).
Pelo que não há como olhar para a evolução do próprio exercício do poder, na sua preferencial informalidade e para aquilo que nela subsiste, apesar das mudanças, mesmo em relação ao que “parece ter mudado de significado”. E um bom ponto de partida, entre nós, será o das festas tradicionais, no que elas representaram de microcosmo, enquanto permaneceu a vitalidade social das respetivas comunidades.
Era nelas que a estrutura social se distendia, mas também confirmava, mesmo quando dava azo a uma tolerada transgressão. E um dos mecanismo por que o fazia era o das ‘visíveis’ despesas sumptuárias, por cuja exuberante capacidade passava o prestígio social. E, através dele, a afirmação do poder, nas suas expressões de dependência e dominação.
Ora, em tão fiel espelho da situação social local, também não podia deixar de refletir-se a mudança, em particular, a da emergência de novas e mais ‘soltas’ frações sociais, com a sua demonstrada aptidão para assegurar a festa e, com ela, a própria afirmação social.
Sem que tal, nas suas diversas manifestações, viesse beliscar a natureza daquele mecanismo de confirmação da estrutura social vigente, o seu direto impacto, o seu fundamental “significado”. E, sendo quem lega diferente herda, nem por isso se deve menosprezar a herança, aquilo que nela persiste, mais concretamente, quanto à consolidação das suas inerentes relações de poder. 
Não seria assim económica, preferencialmente, a função destas despesas sumptuárias, até porque, frequentemente, não teriam correspondência na corrente despesa fixa em salários (falhando o pleno da sua antepassada, em Roma, que não descurava uma ambiciosa máxima de “pão e circo”).
Até porque era ainda através dela que se destacava não só a capacidade de influência, a nível local, como também o poder de uma capaz intermediação com o exterior (poder central), fundamentando o fenómeno estrutural do caciquismo (DEBITA NSTRA CLXX). E, com ele, a institucionalização da sua correspondente resposta (adaptação) cultural, vulgarmente designada por “cunha”.
Resta saber porque é que, em democracia, ela ainda persiste, com tão soberba eficácia...

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