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Debita Nostra LXVII

Luís Costa - 03/08/2017 - 17:08

Por outras palavras, apesar da obstinada convicção liberal – novamente advinda da herança de Smith – de que a existência dos estados e dos mercados são de alguma maneira opostas, o registo histórico implica que o caso é exatamente o inverso. As sociedades sem Estado tendem também a ser sociedades sem mercado.” (tradução livre de David Graeber, 2011, Debt – The first 5000 years, pp. 50)
A influência do liberalismo, enquanto pensamento hegemónico, pode estar tanto na convicção dos que o defendem quanto nos pressupostos dos que se lhe opõem. Só isso explica que, de mão-beijada, se tenha apropriado do fenómeno do mercado, como se ele fora coisa sua.
 Desde logo, quando adotou o maravilhoso aristotélico, que os clássicos haveriam de prolongar, de que a moeda surgiu para facilitar as trocas. Não! Quer o dinheiro, quer o mercado, aparecem ligados à formação dos estados e dos seus exércitos, cujo pagamento, exigindo impostos, obrigaria também à convertibilidade entre o soldo e os mais diversos bens.
Ainda quando o mercado não se desenvolveu à sombra do Estado, foi apoiado na pujança de uma robusta ‘sociedade civil’, que tornaria redundante, se não absurda a expressão ‘economia social de mercado’. Assim no mundo árabe, onde o ‘bazar’ se tornou na “mais alta expressão da liberdade humana e da solidariedade comunal”. Assim muito mais tarde, nas primeiras comunidades puritanas que determinavam elas próprias “a admissão ou não à plena cidadania política”. Agora, onde a cumplicidade entre o mercado e o Estado se mostrou mais vigorosa, fazendo jus à tradição de conciliação dos opostos e aliando o espirito mercantil do budismo ao de um Estado forte, do confucionismo, foi (é?) na China.
É claro que todo este devir histórico cruzou as mais diversas formas sociais e manifestações de poder político. Mas a própria forma liberal, ao minimizar o Estado, seria de todo contraditória se, para além de uma lógica económica, não congregasse uma agenda política. 
É que Adam Smith não era contra a interferência do poder no jogo das trocas que, por “mão invisível”, haveria de conduzir a um hipotético equilíbrio social. Ao omitir que o mercado se desenrola num contexto de correlação de forças (poderes), aceitava o seu condicionamento pelos poderes fácticos que nem precisam de se manifestar para se exercer. E se, num primeiro momento, se tratava de reforçar o mercado contra o Estado aristocrático, já depois, era a maneira de o eximir ao controle do Estado democrático.
Mas o procedimento mercantil não mudou, o que mudou foi o poder. Desde logo o de, à revelia de Smith, definir o que é ou não mercado, pelo que a questão política não é a da sua existência, mas a do poder que o subverte. E nada lhe foi mais favorável do que o próprio marketing da incompatibilidade entre o mercado e o Estado. 
Ao ponto de este já ter sido posto a vender alfinetes, com os resultados económicos e políticos que se conhecem…

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