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Leitores: Digressões Interiores. Do Vale Chiqueiro aos Vilares de Baixo Ou o rio que nunca morre

João Lourenço Roque - 14/03/2019 - 9:38

Por norma é em Coimbra que escrevo as minhas crónicas. Hoje, 1 de fevereiro, aproveitei o dia da tempestade Helena, que me impediu de espairecer nas lidas agrícolas ou nos passeios pelo campo, para me entregar aos ditames e impulsos da escrita.

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Por norma é em Coimbra que escrevo as minhas crónicas. Hoje, 1 de fevereiro, aproveitei o dia da tempestade Helena, que me impediu de espairecer nas lidas agrícolas ou nos passeios pelo campo, para me entregar aos ditames e impulsos da escrita. Na velha casa de xisto, perto da lareira bem acesa e do pipo bem à mão na adega. Por companhia, apenas a “Mia” e a “Pia”, as duas gatinhas que não me largam, bem tratadas e mimadas. Por falar na minha adega – onde também guardo excelentes tintos regionais, entre eles “Quinta dos Termos”, “Quinta dos Currais” e o novíssimo “Adega 23” de Sarnadas de Rodão – lembrei-me da “Rota das Adegas” do Vale Chiqueiro que, segundo li no “Reconquista”, juntou 600 participantes. Por este andar, aquela meritória iniciativa tornar-se-á um dos melhores eventos vinícolas, sociais e culturais e o maior cartaz turístico de Inverno no quadro regional, acrescentando mais proveito e fama à freguesia de Santo André das Tojeiras que, com alguma regularidade, aparece nas páginas dos jornais, ao invés das Sarzedas sem que eu consiga descortinar as verdadeiras razões. Desconfio que a diferença advirá do carácter e da natureza das gentes da nossa freguesia, mais fechadas e distantes – cada qual na sua casa, na sua eira, na sua vidinha e nos seus lamentos -, tirando o caso dos Vilares de Baixo (terra do meu avô materno, também João) que de quase tudo fazem pretexto para danças e outros folguedos, comezainas e ajuntamentos sem “coletes amarelos”. Sorte teria o Zé Paulo, se a sorte assim quisesse! Gente brava, imaginativa, cosmopolita, bairrista, reinadia! Em meu redor – seja nos Calvos, nas Teixugueiras, na Nave, nas Versadas, no Vale da Sertã, em São Domingos (terra ainda populosa e com muita juventude) ou na Lomba Chã -, quase só rotinas e pasmaceira. Pasmaceira que só não é maior graças aos cafés das duas últimas localidades que mencionei. Quanto ao resto da freguesia, julgo que o panorama pouco diferente será, talvez com exceção do Sesmo, das Gatas, do Pé da Serra ou da Grade... Da Azenha e da Magueija quase nada sei, salvo o que me vais dizendo. Do Maxial do Campo, um simpático casal me traz a lenha – boa lenha! – que me aquece no Inverno. Que preguiça a minha! Logo eu, com tantos pinheiros deitados no chão, mais-valia ter comprado o “motosserra” que há muitos anos em Castelo Branco um cigano me queria vender, “quase dado”. Insisto na pasmaceira e lamento que assim aconteça, porque de pequenas coisas se pode fazer história e vida social. Aqui e acolá tudo seria ainda pior se não fossem os ingleses… A talho de foice, volto aos referidos cafés para adiantar que, com alguma imaginação e ousadia, bem podiam agarrar mais clientela e colorir as nossas vidas cinzentas. Bastava contratarem um pianista ou um acordeonista residente ou promoverem periodicamente grandes serões musicais. Bem sei que não será fácil trazerem grandes vedetas nacionais e internacionais, mas não faltam alternativas acessíveis numa região em que abundam excelentes músicos e grandes cantadores e cantadeiras, sem esquecer a “prata da casa”. Pensem nisso e, se precisarem de ajuda na escolha dos artistas, podem contar comigo. Regresso ao Vale Chiqueiro, onde ainda tenho bons parentes na “cepa” da saudosa tia Rosalina das Garridas (irmã do meu avô paterno) e dos saudosos primos Maria Rosalina e João “Manjerico”. Se eu soubesse ou adivinhasse que a “Rota das Adegas” reunia tanta gente, também eu, mesmo sem ser convidado, teria aparecido mas sem o “acordeon”…Com tamanha multidão ninguém daria pela minha presença e mais facilmente, ou mais à vontade, enchia a barriga de vinho e saborosos petiscos… Fica para a próxima se eu desconfiar ou alguém me avisar a tempo. Nos Calvos, ainda com adegas mas sem rotas, espera-se festa rija na inauguração dos grandes melhoramentos no lagar-museu. Festa maior, mas muito incerta, só quando o Sporting ganhar o campeonato… Entretanto, outras notícias se levantam, algumas tristes. A 27 de Janeiro partiu mais um bom “vizinho”, o Senhor Martins que fez dos Calvos terra de marinheiros. Contaram-me que o pombo do João Morgado continuava vivo, sozinho no seu pombal, meses depois de o dono ter ido para Castelo Branco amparado pela “Casa Santa”. Por fim soltaram-no ou ele fugiu, voando para destino incerto e perigoso. Boa notícia seria o regresso da Ti Lúcia, aquartelada em Mação perto de Abrantes e assim “tudo como dantes… ”Poucos mas bons os meus vizinhos. A Piedade oferece-me fatias de mel e pudins, sempre que os faz. A minha cunhada Otília dá-me queijos frescos deliciosos e outros mimos gastronómicos. Além disso, sempre que vou a Coimbra – e tantas vezes ainda vou…ou quero ir – costuma dizer-me: ”Veja se não se demora, temos medo quando cá não está…”. Principiou a “campanha dos tortulhos”, antes que o cuco se aproxime. A primeira pesquisa fi-la brevemente no dia 31 de Janeiro – data histórica… -, com escassos resultados, apenas seis rogadelas e seis tortulhos pequenos. Para estreia não foi mau. Este ano se a coisa der tenciono investir sobretudo nas vendas ao domicílio, embora sem descurar a exportação. Tenho em vista uma nova carrinha, já apalavrei “pessoal de campo”, para os diversos cantões, e uma empregada, muito vistosa e dinâmica, encarregue da distribuição de terra em terra. O que mais me preocupa, além das alterações climáticas, é a grande subida das licenças camarárias e das rendas ou percentagens cobradas pelos donos dos terrenos. Ainda pior, a concorrência dos “clandestinos” que nem de noite param, servindo-se de potentes focos luminosos instalados nos telemóveis ou nos capacetes…Fora de brincadeiras, em assuntos de topo, julgo que voltou à baila a construção da barragem. Sou contra, embora isso de nada valha, por razões que já por diversas vezes sublinhei, mas se o projeto, que soma a minha idade, vier a avançar, espero que o nomeiem como deve ser: Porquê “barragem do Alvito”? Será que pretendem diminuir ou rebatizar o rio Ocreza? Pelos vistos alguns nem o rio conhecem… Este rio de toda a nossa vida, ou da nossa vida toda, que insistem em desfigurar… Rio que nunca morre mesmo quando morre nas pessoas que vão morrendo … Ainda no topo, boa notícia – excelente notícia! – será o regresso de Maria João Pires a Belgais. Vivemos no mundo ou nas sociedades do conhecimento, ouvimos dizer a cada passo. Talvez por isso fico estarrecido – ou talvez não – com tantos exemplos de ignorância e de falta de “cultura geral” não apenas nas “bases sociais e profissionais” mas também em sectores da “alta” e nas esferas do poder, entre pessoas que ostentam pomposas qualificações e exercem cargos e funções de grande responsabilidade, em áreas públicas ou privadas. Além disso, leio, de quando em vez, em jornais ou revistas de referência, que, na Alemanha e por essa Europa fora, há muitos jovens que pouco ou nada sabem do “holocausto” e das guerras mundiais… Ouço dizer que nas universidades, mesmo alguns alunos com notórias limitações científicas e culturais – incapazes de grandes ou pequenas reflexões multidisciplinares - alcançam com relativa facilidade mestrados e doutoramentos… Fico estarrecido com tanta coisa, ou coisa nenhuma. Pior que tudo é a “burrice” ou a incultura de líderes políticos em diversos países, à escala mundial. Que falta nos faz, que falta lhes faz saber geografia, literatura, arte, filosofia, “ciências da natureza”, matemática e muito mais. Sobretudo história, para entenderem o mundo e as sociedades atuais e governarem a bem dos cidadãos e da humanidade. Falo dos outros, mais podia ou devia falar de mim próprio. Porém, por ser velho e aposentado, a minha “burrice” e a minha incultura não causam qualquer mossa à sociedade e ao mundo. Só a mim me limitam e prejudicam. Longa e aos ziguezagues vai esta crónica que ultimei em Castelo Branco, no “café das tílias”, e em Coimbra, na “pastelaria mil doce”. Em Castelo Branco, onde ainda te procuro nas luzes da cidade ou perto do rio que nunca morre, mesmo quando morre nas pessoas que vão morrendo… Em Coimbra, a torre onde já não chego, outro rio que agora nos separa e me faz medo. Em Coimbra, onde mais me lembram outros nomes, outras vozes, outras terras. Chamo de novo a música do sertão brasileiro e a linda voz de Isabel Silvestre: “Quando o verde dos teus olhos/ se espalhar na plantação/ eu t’asseguro, não chores não/ eu voltarei sim, meu coração”.

João Lourenço Roque

COMENTÁRIOS

Maria Beatriz
à muito tempo atrás
Muito versátil em abordagens de temas , mas com incidência em dois pontos: o comportamento social das terras vizinhas e a sua aldeia; o desabafo quanto à ignorância que reina nas camadas políticas , pela Europa fora , como em Portugal. Uns versos serviram para adocicarem os leitores e dar vida amorosa a esta crónica. Muito interessante, sempre com visualidade quanto basta!!!