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Cata-ventos: O poema do coração de António Gedeão

Costa Alves - 24/03/2022 - 9:42

António Gedeão transformava ciência em poesia. Ora diga-me lá se o “Poema do Coração”, que transcrevo a seguir, não é poesia na ciência e ciência na poesia. Tão entrelaçadamente que não sei distinguir. Contra a vox populi, este poema ensinou-me qual não é a função do coração. Ora leia o que dizia o professor Rómulo de Carvalho ao poeta António Gedeão e este àquele. Inteirinho. Bem saboreado, como manda a beleza e o rigor da lição:
“Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,/ e também a Bondade,/ e a Sinceridade,/ e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração./ Então poderia dizer-vos:/ “Meus amados irmãos,/ falo-vos do coração”,/ ou então:/ “com o coração nas mãos”.// Mas o meu coração é como o dos compêndios./ Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)/ e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos)./ O sangue ao circular contrai-os e distende-os/ segundo a obrigação das leis dos movimentos.// Por vezes acontece/ ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados,/ e uma lâmina baça e agreste, que endurece/ a luz dos olhos em bisel cortados./ Parece então que o coração estremece./ Mas não./ Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,/ que esse vento que sopra e ateia os incêndios,/ é coisa do simpático./ Vem tudo nos compêndios.// Então, meninos!/ Vamos à lição!/Em quantas partes se divide o coração?”
Quando li esta lição de António Gedeão/ Rómulo de Carvalho - ia alta a minha adolescência - percebi que precisava de corrigir o que se dizia, e eu assim julgava, sobre a sede das afeições e, sobretudo, do amor que Camões define assim neste extrato do maravilhoso soneto que todos conhecemos: “Amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente;/ É dor que desatina sem doer”.
Lia o que Cecília Meireles nos deixou e não duvidava do que dizia: “Oh, quanto me pesa/ este coração, que é de pedra!/ Este coração que era de asas/ de música e tempo de lágrimas.” E também Fernando Pessoa: “Sossega, coração! Não desesperes!/ Talvez um dia, para além dos dias,/ Encontres o que queres porque o queres”. 
Quase toda a poesia coloca o coração no posto de comando do que fazemos e sentimos; e o senso comum também. Estava de coração partido. O terror gela o coração. Coração destroçado. Desejavam de todo o coração que a guerra acabasse. A ambição cerra o coração. Não têm coração. O coração tem razões que a razão desconhece. Dava-te o meu coração, se o teu ao meu leal fosse. É um coração repleto de virtudes. Contas na mão e o demo no coração. A ferrugem come o ferro e o cuidado o coração. A tristeza aperta o coração. A língua não mente o que o coração sente. As palavras boas são, assim fora o coração. Boca de mel, coração de fel. Boca que apetece, coração que deseja. Música no coração.
Hoje entendo-as como falas de uma metáfora; uma metáfora desajustada do conhecimento que adquiri, a partir do poema de António Gedeão. 
Realmente, o seu poema-lição dizia-me o que precisava; pela voz da ciência da poesia e da poesia da ciência. Aprendi que o “simpático” de que fala o poema, isto é, o sistema nervoso simpático é que determina o comportamento do coração referido pelos eruditos e pelo senso comum. O louvado coração do amor, da bondade e da sinceridade limita-se a responder com a sua função orgânica. Em vez da mão no peito na direção do coração, em jeito de menagem, passei a colocá-la mentalmente fora do sítio historicamente convencionado. Num sítio bem mais alto.
mcosta.alves@gmail.com

 

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