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Mortes vivas

Florentino Beirão - 18/02/2021 - 9:56

Ao longo do último ano, tempo em que já dura a dolorosa pandemia que nos tem retido confinados, embora pelos piores motivos, muito se tem falado das pessoas que vivem nas residências para idosos. Antes do covid-19, pelo que nos é dado agora saber, uma boa parte dos cidadãos e dos políticos, parece que pouco ou nada sabiam do que se passava nestas instituições, quer nas clandestinas quer nas comparticipadas pelo Estado. Esta realidade tão diversificada, geralmente escondida da sociedade, para muitos seria completamente ignorada. Menos ainda se sabia, como eram ali tratados os seus utentes a viver em residências algumas com falta de espaço, de higiene, de cuidados de saúde e até à míngua de alimentação. Os idosos, ali “descartados” pelas suas famílias, lá permaneciam encerrados, muitas vezes entregues à sua imensa solidão no mais puro desconforto afetivo, até que a morte os viesse chamar e os libertasse do seu sofrimento. O povo, referindo-se a estes idosos, costuma usar a expressão: “são como mortes vivas”. Hoje, com as televisões a revelar-nos quase diariamente, muitos casos de puro abandono ou até de maus tratos aos idosos, salta-nos ao espírito a seguinte interrogação: como é possível acontecer no nosso país situações tão desumanas?
Num dos canais de televisão, na passada semana foi mostrada uma dolorosa situação de profunda desumanidade num dos lares do distrito da Guarda, em que um dos membros do casal se encontrava a residir no mesmo lar, mas em andar diferente. Perante esta situação, o marido queixava-se à jornalista que vivia doente e prostrado na sua enorme tristeza, pelo facto de nem sequer poder ver a sua esposa. Esta realidade, em alguns lares de idosos, chega mesmo a atingir níveis de profunda insensibilidade. Felizmente, esta situação não é a norma geral, havendo instituições onde a humanização é uma preocupação permanente.
O que importa agora, com melhor conhecimento dos problemas sociais dos idosos revelados pela pandemia, é prestar redobrada atenção aos lares de idosos, uma vez que hoje já não podemos ignorar as suas gritantes deficiências. São problemas endémicos cujo acompanhamento a Inspeção da Segurança Social não pode olvidar.
As debilidades neste setor, expostas agora com tanta crueza, jamais as poderemos ignorar como se não existissem. Não podemos ficar indiferentes a tanta incúria praticada em algumas instituições, cujo fim não pode ser apenas o lucro fácil.
Os idosos que tanto trabalharam para nos criar e para desenvolver o país merecem mais e melhor. Como os números revelam, esta geração de idosos é muito numerosa e tende a crescer ainda mais. Segundo a Pordata, entre 2000 e 2019, existiam mais de 596.822 residentes em Portugal, com 65 ou mais anos. E, do total de agregados domésticos unipessoais, em 2019, era de 934,1, sendo 513,2 pessoas do mesmo escalão etário. Segundo notícia da revista “Dinheiro Vivo” em 2019 existiam 729 lares privados com capacidade para cerca de 2200 idosos, representando um negócio de 330 milhões de euros. 
Pelo que temos sabido ao longo de um ano do covid-19, em muitas residências para idosos, o lucro egoísta tem-se sobreposto ao cuidado das suas necessidades.
Para lidarmos com esta nova realidade, temos que nos preparar para um novo paradigma societal em que o número dos mais velhos vão superar o dos mais novos. Os problemas daqui decorrentes têm ver com o futuro da Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Como é sabido, o modo como uma sociedade trata a sua população mais idosa, revela bem o grau do seu desenvolvimento civilizacional. Quanto a nós ser velho não devia ser igual a estar condenado a esperar pela morte, mas ser considerado e tratado como uma pessoa com direito a viver os seus últimos dias com a maior dignidade possível. Se bem pensarmos, nenhum de nós teria nascido e aprendido a viver, sem os que hoje são chamados de velhos. Os muçulmanos e os chineses, quando, se referem à civilização ocidental, consideram abjeta a forma como nós tratamos os nossos velhos, descartando-os quando podiam ainda permanecer nas suas casas, com o apoio social, devido a cada situação. Rematamos chamando a atenção para a nossa problemática situação demográfica. Hoje em Portugal nascem muito poucas crianças e, uma boa parte dos idosos acaba por morrer sozinho nos lares ou em suas casas, considerados como “mortos vivos”. Temos de virar a página.

florentinobeirao@hotmail.com
 

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