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Adeus a Eduardo Lourenço (1923-2020): Um deslumbrante pensador

Florentino Beirão - 17/12/2020 - 9:23

“Há dias em que madrugamos e julgamos que vamos apanhar Deus. Em vão: Deus levanta-se sempre mais cedo” 
(Eduardo Lourenço).

O país acordou na madrugada do primeiro dia de dezembro, feriado da Restauração da Independência, com a notícia do falecimento do pensador, ensaísta e professor de filosofia, Eduardo Lourenço Faria, com 97 anos, em Lisboa.
A nível cultural, social e político nada escapou à sua fina e profunda análise crítica. Desde a literatura ao cinema, da música à poesia. Para ele, não havia barreiras à sua argúcia de pensador do nosso país, da Europa, da política e do cristianismo.
 Prémio de Camões e de Pessoa (1996 e 2011), entre muitos outros galardões que recebeu, neles se inclui ainda o mais recente de abril último, “Árvore da Vida, p. Manuel Antunes”, seu velho amigo. Em França, onde viveu muitos largos anos, como professor universitário, foi igualmente homenageado com o valioso prémio nacional Charles Veillon, em 1988.
 Eduardo Lourenço de Faria era o irmão mais velho de uma família numerosa de cinco rapazes e duas raparigas das quais, uma carmelita no Brasil. Nasceu na raia, na pequena freguesia de S. Pedro de Rio Seco, em 23.05.1923, embora registado seis dias depois. A este propósito, ironizava dizendo que “estive seis dias fora do tempo e assim fiquei sempre”. A sua pequena aldeia, sem água nem luz, como a maioria do país, faz parte do concelho de Almeida, distrito da Guarda, cidade detentora de uma boa parte do espólio literário de E. Lourenço, incluído numa biblioteca com o seu nome. 
O seu pai Abílio de Faria, como capitão do exército, andou sempre de um lado para outro, dando limitada assistência aos filhos. Por esta razão, E. Lourenço, o seu filho mais velho, considerava-o como “uma referência ausente”. Sobrava a sua mãe Maria de Jesus Lourenço que teve de assumir a educação dos seus sete filhos, em ambiente de profunda religiosidade, como acontecia nas terras do nosso país republicano, tradicionalmente católico.
A este propósito, o professor e filósofo confidenciou um dia: “ a minha família era organicamente catolicíssima, poi a minha mãe era uma mulher piedosa, até mais do que isso”. Rematava dizendo que “quando se teve esse tipo de formação, ele fica sempre no fundo de nós. Uma pessoa nunca mais arranca dessa matriz”.
Após a escola primária, o menino Eduardo foi estudar para o Liceu da Guarda, e daqui rumou para o colégio militar em Lisboa. Deste modo, voltou as costas aos desígnios da mãe que o via mais destinado à vida eclesiástica.
Concluídos aqui os seus estudos, ingressou na universidade de Coimbra (1940.1946), onde foi professor- assistente, entre1947 e 1953. Nesta cidade, ligado ao CADC (Centro Académico da Democracia Cristã), alargou os seus horizontes intelectuais, cercado por uma geração de relevantes escritores neo - realistas e pensadores cristãos.
Depois da sua experiência como docente, foi ensinar para algumas universidades de França e até do Brasil. Regressando deste país a França, aqui casou em 1954, com a francesa da Bretanha Annie Salomon que viria a falecer em Portugal, em 2013. Como se verifica, a sua vida foi um desalinho permanente, saltando de um país para outro. Só após a Revolução do 25 de abril, se foi aproximando mais do seu país.
A sua obra atinge cerca de meia centena de livros e está a ser organizada e publicada pela F. Calouste Gulbenkian.
Eduardo Lourenço publicou uma das suas mais importantes obras, Heterodoxias I, em 1949, onde cortou, intelectualmente, com alguns dos seus amigos e colegas marxistas, procurando espaços mais amplos para pensar, sem filiação a qualquer corrente ideológica. Em 1967, publicou ainda Heterodoxia II, onde revelou o seu modo crítico de entender a experiência cristã, como uma relação pessoal com Deus – da qual nunca se afastou. A este propósito escreveu: “a fé é um combate teórico (…) mas com a certeza de se manter com Deus uma relação que o homem não pode postular, pois Ele existe sem o seu consentimento, uma relação positiva, de pessoa a pessoa, caracterizada pelo inegável amor que Deus nos dispensa”.
O cristianismo para ele, “é uma experiência profundamente encarnada no tempo histórico concreto, pois não é possível viver sem uma parte de utopia e de sonho, onde concentramos o valor, a beleza e sobretudo a verdade e que é o divino ou antes Deus”.
forentinobeirao@hotmail.com

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