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Leitores: A obra é bem mais firme exata

Gonçalo Salvado - 26/10/2023 - 9:50

Ainda em defesa da magnífica obra poética de António Salvado

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Começo hoje esta minha resposta a novo e insidioso artigo publicado nas páginas deste jornal a 19 de outubro sobre o tema da obra e do nome de meu pai, o grande Poeta António Salvado, em boa hora atribuído pelo atual executivo à Biblioteca Municipal de Castelo Branco, citando no título em epígrafe um verso seu, que poderia resumir essa mesma resposta. Esse verso, que assume hoje um valor simbólico e lapidar, foi retirado do livro de sua autoria dedicado ao Jardim do Paço, ícone maior da cidade de Castelo Branco.
De facto, a obra aí está, a sua Obra, seu legado poético, mais firme e exata do que nunca, com o esplendor da palavra que uma vez aceso e foi o caso, não se apaga jamais. O que dispensa as palavras, inúteis, ofensivas e grotescas que têm sido proferidas a respeito dessa realidade incontestável para quem de poesia verdadeiramente entende.
Limito-me hoje a citar entre muitos, o crítico literário e poeta Fernando Guimarães, um dos maiores nomes na atualidade, da crítica e da história da literatura portuguesas, que em extenso artigo publicado no “Jornal de Letras”, aquando do falecimento de meu pai, verdadeira lição de história da literatura, resume o lugar e o valor da sua obra poética, ainda naturalmente a estudar e a divulgar: o que considera a “viva originalidade” nos poemas que cita e “também, em toda a poesia de António Salvado, pois ela ajuda a dar corpo a um bem marcado espaço geracional que se situa na evolução da nossa poesia”. Antes dessa afirmação realçando esta originalidade, Fernando Guimarães refere ainda magistralmente vetores fundamentais da sua poesia, que passo a citar: “António Salvado (…) é um nome que prevalece entre os poetas que se revelaram na segunda metade da década de 50”.
Esclarecendo: “algumas das tendências simbolistas e modernistas fazem-se sentir na poesia de António Salvado, embora em relação a elas a sua poesia se tenha sempre afastado de uma afirmação propriamente vanguardista. Nela, pelo contrário, há um equilibrado pendor que a torna secretamente contida, algo de recôndito que aponta para uma subjetividade que acaba por ficar diferida pelo modo como se aproxima de uma expressividade própria da tradição, sem que isso comprometa a tal modernidade que foi referida.” 
O seu lugar, situando-se no que o crítico considera uma “difícil passagem” (título de um dos seus livros) entre a tendência surrealista dos anos 50 e a linguagem mais contida o “estreitamento verbal” da década de 60. 
Valorizando na sua poesia a “verdadeira intertextualidade que poderia recuar ao lirismo dos cancioneiros,” em que se reflete uma sua característica “nota decetiva” que interpreta: “Essa tonalidade não deixa de marcar a tradição que se desenvolveu ao longo do tempo na poesia portuguesa. Não é por acaso que alusões camonianas aparecem no que António Salvado escreveu. E este recurso à tradição mais explícito se torna num longo poema que, por razões mais adiante referidas, se intitula “soneto em lembrança de João Roiz de Castelo Branco”. 
Acrescentando: “Note-se ainda que ao longo da obra poética de António Salvado há a considerar um alargamento de índole cultural que não se limita a um encontro com a nossa tradição poética. Ela alarga-se, por exemplo, à cultura greco-romana, (…) Mais. Essa confluência pode deslocar-se para as artes plásticas. É o que acontece num seu livro de 1995 que se intitula Estórias na Arte. E o mesmo ocorre em Jardim do Paço.”
O lugar da poesia de António Salvado na história da literatura portuguesa, aparece, assim, perfeitamente definido por um dos mais prestigiados críticos literários do nosso País, e o poeta surge entre os maiores dos seus pares, na geração a que pertenceu, entre a modernidade e a tradição, entre a inovação e a lição clássica que nunca deixou de evocar, numa “verdadeira intertextualidade que poderia recuar ao lirismo dos cancioneiros”, estendendo-se às artes plásticas e que é bem a marca da extraordinária riqueza cultural que caracteriza a sua poesia.
Muito haveria e haverá ainda a dizer sobre a sua Obra que já iniciou a sua interminável e secreta viagem (título de um livro de David Mourão-Ferreira, que repito  admirava os versos de meu pai) – rumo ao futuro.
A minha intenção seria terminar aqui este novo, e que desejo final testemunho, sobre o valor da sua Obra poética e a pertinência e justiça da atribuição do seu nome à Biblioteca Municipal de Castelo Branco. 
Não podem, no entanto, ficar sem resposta algumas das afirmações inconsequentes e marcadamente tendenciosas e mal-intencionadas do autor do artigo citado. Os seus objetivos estão aí claramente definidos. Por um lado, contestar em termos violentos e virulentos, a atribuição do nome de António Salvado à Biblioteca Municipal da cidade de Castelo Branco, da qual foi, nas últimas décadas, o principal expoente na área da cultura e uma referência a nível nacional. Por outro lado, e para conseguir tornar credível essa postura, contestar igualmente, sem quaisquer argumentos válidos, para os quais nem sequer lhe é reconhecida competência, e de um modo ofensivo, o valor de uma obra que já conquistou por mérito próprio um lugar de prestígio na história da literatura portuguesa. Isto depois de referir (a 24 de agosto) que “é o tempo futuro que a há-de julgar e determinar o seu real valor”. 
Uma contradição de fundo, entre outras, nas quais vamos deter-nos para que este inqualificável testemunho seja em definitivo desconsiderado. 
No seu último artigo e nos anteriores, o seu autor lamentavelmente parece ter-se especializado na arte da contradição. Seria moroso e fastidioso para o leitor enumerar todas aquelas em que incorre, dando provas não apenas de menoridade, mas de desonestidade intelectual, como já afirmei.
Começo pela mais notória e lamentável destas contradições. Defende acerrimamente a precedência da atribuição do nome de Jaime Lopes Dias à Biblioteca Municipal de Castelo Branco, mas não menciona essa atribuição na obra em 2 volumes: De Seminário Para Meninos Órfãos de Ambos os Sexos A Colégio de S. Fiel (1852-1910) (RVJ editores, Castelo Branco, 2017) no conjunto das distinções de que foi alvo.  No 1º volume dessa obra (pág. 360), refere no perfil que traça de Jaime Lopes Dias: “Como sinal exterior de reconhecimento pelos serviços prestados à cidade e região de Castelo Branco, em 1971 o elenco camarário decidiu dar o seu nome a uma artéria cidade.” Acrescentando: “Antes, em 1929, já a Freguesia de Monsanto tinha feito outro tanto.” Nada referindo, significativamente, do que afirma perentoriamente nos seus artigos, sobre o compromisso, aliás nunca oficializado, da edilidade, de atribuir o seu nome à Biblioteca Municipal de Castelo Branco, que resultou de facto apenas na atribuição, como ele próprio esclarece nesse mesmo artigo, do seu nome a uma sala. 
Desse falso pressuposto, por si mesmo negado, em letra de forma neste volume, resultaram toda a espécie de invetivas e de impropérios relativamente aos poderes locais que tomaram por unanimidade, e muito justamente, a decisão da atribuição do nome de António Salvado à B.M. de C.B., sem qualquer intervenção do que ele considera depreciativamente o grupo dos seus amigos e familiares, a quem este facto, anunciado na cerimónia pública de homenagem a Eugénio de Andrade na qual tive a honra de participar, não apenas naturalmente alegrou, como surpreendeu. Chegando, num golpe dramático de estilo teatral no meio de uma insuperável e oca verborreia, a afirmar que tal facto se deu sobre “o cadáver de Jaime Lopes Dias”.
Por outro lado, após veementemente e longamente, defender que um espaço público não deve ter a si associado qualquer nome, aponta logo em seguida, para a Biblioteca Municipal de Castelo Branco, não apenas um, mas dois nomes: o de José António Morão e o de Jaime Lopes Dias. (“Jornal Reconquista”, 24 de Agosto de 2023)
Infelizmente, as contradições e o absurdo não ficam por aqui. O autor insurge-se contra a figura da Autoridade por mim invocada a propósito de grandes personalidades que defendem a poesia e a obra de António Salvado, como Natália Correia, David-Mourão Ferreira, Cabral de Nascimento, entre muitos outros, elenco de que fica a fazer parte o já citado Fernando Guimarães. 
E, no entanto, pelo seu lado, apela, com o intuito de fornecer alicerces ao seu fragilíssimo edifício por si mesmo condenado à ruína, a toda uma tradição da cultura Ocidental, de Sócrates a Kant e a Goethe. Para supostamente defender uma posição ética e moral que no seu caso assenta na desqualificação de uma obra, sem argumentos válidos para o fazer, apenas com um único objetivo, impedir a perenidade dessa mesma obra e do nome do seu autor atribuído à Biblioteca Municipal da cidade onde nasceu e desenvolveu a sua criação. Facto que aliás tem honrosos precedentes na atribuição do nome de António Botto à Biblioteca Municipal de Abrantes e de Eugénio de Andrade à Biblioteca Municipal do Fundão, e refiro apenas estes dois exemplos por serem dois poetas da minha predileção. 
Os qualificativos que lança no final do seu último artigo visando os envolvidos no que considera uma ação vergonhosa e vil, deveriam de facto, e no efeito de um justo boomerang, reverter para quem lamentavelmente os profere. Se para Kant, um dos ilustres citados, o valor moral de uma ação decorre da intenção com que é praticada, não podemos deixar de qualificar a sua ação, que a história se encarregará de julgar, vergonhosa e vil, uma infâmia. A ação de negar o valor a uma obra que inquestionavelmente o detém, agredindo e vituperando quem com justiça o reconhece.
Terminando como comecei, dou a palavra ao meu pai, o grande Poeta António Salvado que afinal hoje, como todos os imortais, volta a assumir, depois de nos ter deixado, o eterno e maravilhoso dom da palavra, da sua palavra: “a obra é bem mais firme, exata”.
Gonçalo Salvado, Poeta.

 

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