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Leitores: Cantinho da Saudade. O tufão que atingiu o Liceu em 1954

João Bártolo - 15/06/2023 - 9:53

Regressar aos anos vividos no Liceu Nun’ Álvares é, em simultâneo, trazer à memória os  verdes anos de uma juventude em construção - em que as amizades lançavam raízes que pela vida nos iam acompanhar...

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Regressar aos anos vividos no Liceu Nun’ Álvares é, em simultâneo, trazer à memória os  verdes anos de uma juventude em construção - em que as amizades lançavam raízes que pela vida nos iam acompanhar; em que os saberes diversificados cresciam em nós e nos eram transmitidos por professores atentos e dedicados; em que, com juvenil candura, os primeiros amores iam despontando - é como recolher de uma seara longínqua e já ressequida, inesperadas e novamente verdejantes sementes que, por momentos, acreditamos que poderão voltar a deitar raízes na terra acolhedora de Castelo Branco. Memórias envoltas em saudades em que, para a maioria, é a cor da alegria que as ilumina. E, todavia, momentos vivemos também em que por muito que os quiséssemos ter esquecido, carregados de tristeza, teimaram, esses sim, em acompanhar-nos pela vida.
Foi o caso do raro evento meteorológico, O TUFÃO, que com extrema violência nos atingiu num sábado, a 6 de Novembro de 1954, quando regressávamos a casa, terminada a última aula dessa manhã.
Andava no 7º ano e a minha turma tinha acabado de fazer um exercício de filosofia a que o Dr. Duque Vieira nos tinha convocado. Caminhava já pela Avenida Nun’Álvares, acompanhado do colega Manuel Evangelista (este, como usualmente, de capa e batina) quando o vento começou, inesperadamente, a soprar forte e acompanhado de chuva. Eu, que de início ia tentando tapar o Manuel Evangelista e a mim com um guarda-chuva, compreendi que melhor era fechá-lo e, mesmo, pô-lo com o bico contra o sentido do vento que cada vez soprava mais forte. Atrás de nós avançava uma enorme nuvem de um cinzento escuro, acompanhada de um estrondoso barulho. Por momentos, o Manuel Evangelista teve dificuldade em desembaraçar-se da capa e pouco mais à frente, incapazes de nos mantermos em pé, procurámos, frente à casa do Dr. Lopes Dias, o lambril do passeio, deitando-nos no pavimento da avenida junto a ele, na esperança de alguma protecção.
Passados umas poucas dezenas de segundos, que nos pareceram longos minutos, abrindo os olhos compreendemos bruscamente que a destruição tinha sido tremenda: automóveis atirados contra paredes, árvores arrancadas, casas destelhadas, colegas na proximidade sangrando …
Aturdidos e desorientados, encaminhámo-nos para as nossas casas, procurando saber de familiares que àquela hora faziam o mesmo trajecto.
A pouco e pouco, com o passar das horas, as más notícias iam-se juntando: vários mortos, centenas de feridos no hospital …
Mas, no nosso caso, a notícia tocava-nos ainda mais fortemente: dos dois alunos do liceu que tinham morrido, um era a nossa colega Gabriela que, como nós, tinha acabado de fazer o exercício de filosofia. Tinha faltado aos dois primeiros tempos e ficado em casa a rever a matéria de filosofia, apresentando-se só à última aula. Apanhada, como muitos colegas, também na Avenida, agarrou-se ao tronco de uma das árvores – à qual, por acaso, se havia também agarrado o Manuel Pina de Carvalho. Só que com a força do vento ela não resistiu e foi atirada contra uma parede vindo a falecer. O Manuel Pina tentou ainda segurá-la, sem nada conseguir.
Eis porque, regressando aos doces tempos de juventude que no liceu e na cidade vivemos, avivando saudades, não conseguimos afastar o espinho que, bem aguçado, continua ainda a ferir-nos, trazendo-nos a lembrança daquele trágico episódio.

João Bártolo

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