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Leitores: Carta para António. O amigo-irmão que foi para o lugar onde mora a poesia

José Dias Pires - 09/03/2023 - 10:11

António: também, como a cigarra, pensaste o canto, espraiando o sentimento sobre a palha ressequida do trigal: “Formiga me faria maior, das leiras vencendo o manto, pela Cardosa passando, ganhando, na Mina, a vida no doce de impar odor. Formiga, quem dera ser!”

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António:
também, como a cigarra, pensaste o canto, espraiando o sentimento sobre a palha ressequida do trigal: 
“Formiga me faria maior, das leiras vencendo o manto, pela Cardosa passando, ganhando, na Mina, a vida no doce de impar odor. Formiga, quem dera ser!”
Saudoso dos Açougues, da descida para o Montinho até o Bosque aparecer, das sombras do Lirião, refrigério do estio onde ninguém é sozinho suspiraste em poesia:
“Formiga, se eu pudesse! Nunca cigarra seria e chegaria ao Miradouro no comboio da saudade. Porque a formiga não esquece dos Oleiros a alegria, do Arressário a cantiga
e da Rua D’Ega vontade. Ó vontade de ficar neste presente passado. Terra filha, terra mãe, terra da minha harmonia. Serei como a formiga é!”
E foste.
António: 
como a cigarra gritaste, entre o canto e o desencanto:
“Às pedras do Barrocal hei de ir mil vezes a pé, numa alegria incontida, onde o pouco é sempre tanto, e cada gesto é conquista. Mesmo no longe que é perto, numa Beira Baixa a sul da Salamanca amada, sempre fica uma raiz no coração de quem parte.
Ficam os ecos do roberto enroupado em chita azul no Largo de S. João; dos jogos da apanhada até à Praça da Palha; nas esconsas do velho parque. 
Nos tempos de ser feliz fica o apelo da terra que vem no sopro do vento abraçado ao ar de Lisboa para parar um momento.”
E parou.
António:
Quem, como tu, nos bolsos tem o espaço onde todo o tempo cabe, nessa raiz, que restou, volta a ser fertilizado num sorriso e num abraço, e é formiga.
É formiga, porque sabe dos trilhos por onde andou, de cada folha pisada, de cada flor orvalhada.
É formiga companheira e é cigarra de trabalho que rói o marmelo cru, que aquece os pés à lareira, e é formiga de aconchego e é cigarra de agasalho.
Essa cigarra-formiga, essa formiga-cigarra, António, sempre foi e serás tu.
António:
o teu corpo, a parte de ti  que guardou as memórias a vida inteira, cresceu contigo momento em momento, sentir em sentir, memória em memória.
Tantos instantes, tantas emoções e tantos devires. 
O teu corpo foi a carga exagerada até a escapatória do alívio:  o esquecimento fugaz, a alegria latente, o amor ressurgido, um amar profundo na felicidade construída toda uma vida inesperada, boa, a dar valor ao que a vida te ofereceu todos os dias e lembrar-te do que o tempo te ameaçou num instante irrepetível: uma balança à espera de não perder, miligrama a miligrama, a vontade e o equilíbrio, de todos os contrapesos.
António:
o teu corpo foi sempre um fugitivo em permanência que aprendeu a dizer:
“Estou como os sapatos novos: não me caibo. Estou como os ossos antigos: venço-me a pele e não me caibo. Estou como as palavras gastas: atrapalho-me a língua, já não me caibo. Os pensamentos fazem ricochete cá dentro: e saem porque não me cabem.
Nada me cabe neste tempo que me ocupa tanto espaço.”
António:
passaste a vida a descobrir que estavas como os sapatos trocados por alpargatas e depois foste todos os animais da Arca de Noé e afinal nenhum porque, ao quereres saber de ti, deixaste de caber na Arca que Não É.
António:
ao teu corpo sobreveio a constatação que se engolia, bem mais devagar do que a vontade. 
Se ao menos chovesse tudo e todos num dilúvio de voo, e te ajudasse por não caberes dentro de ti (não era?), sorririas, por certo, esfomeado, como sempre estiveste de partir até onde se não esquece o mar azul, o mar sem fim do mar da fé — o teu sul de olhos fechados e sem pé, para recordares, quase a perder, quem foste, e sempre serás: a estrofe que veio da beira da cortiça, da terra da azeitona e à qual não lhe apetece o não ser que seja um estar devido à preguiça.
António:
eu sei que te apetece dormir, tocar a nota indefinida da pomba, do galo, do faisão, do gato, na tua mão equilibrista e fantasia. 
Eu sei que se pudesses agarrarias na trombeta e partirias até lá bem ao fundo da avenida para tomares o comboio na estação até te perderes de poesia.
Eu sei que te apetece ouvir a  música de Mahler quase sempre num esgar, meio gargalhado, de alegria: semibreves sempre a sorrir para dentro de ti, como quem quer desafiar a noite a não vencer o dia.
Eu sei que te apetece sonhar e vais, sem um pedido de desculpas, ficar, assim, quase a fingir que estás desacordado.
António:
a tua Língua saboreia as palavras, todas, e cria recantos de aconchego, muitos, onde as nossas mãos chegam acompanhadas.
António:
morarás sempre onde mora a nossa Língua, inteira, num mapa onde a imaginação descansa e não sossega.
António: 
na nossa Língua ficas pleno em luz.
Até amanhã, velho irmão de alguns de nós.

José Dias Pires

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