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Leitores: Castelo Branco. Ainda o nome da biblioteca municipal

Leonel Azevedo - 04/10/2023 - 10:24

Resposta aos artigos saídos em “Reconquista”, n.º4045, 21 de Setembro 2023, p.31.

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Reconquista”, n.º4045, 21 de Setembro 2023, p.31. 
1. Em primeiro lugar respondo, sucintamente, ao postal de José Pires. Quando as pessoas são incapazes de argumentar sobre um tema atiram duas pazadas de suposições e insinuações das mais reles características da humanidade, estribadas sempre na forma de perceberem e viverem o mundo que os rodeia e colam-nas à cara do outro, como coisa sua. O seu discurso sobre os baixos sentimentos humanos que me atribui, são uma projecção da sua alma no outro que sou eu, por isso devolvo-os ao remetente, na íntegra. Se quiser debater, pelo menos comigo é assim, cinja-se ao plano das ideias e nele podemos esgrimir argumentos e, chegando ou não a acordo, cada qual defenderá aquilo que pensa e sabe (ou presume saber) — restará sempre um aspecto positivo: a riqueza da pluralidade. 
2. Em relação ao segundo, assinado por Gonçalo Salvado, respondo da seguinte maneira. 
2.1 Em segundo lugar, deixe-me fazer duas ou três observações prévias, estranhas à questão principal. Gosto do seu cartão de apresentação: adepto confesso da liberdade de expressão!, logo faz uma pirueta no vasto campo da intolerância e acusa-me de escrever um artigo no qual me empenhei em, escreve: “denegrir à exaustão, segundo critérios por si estabelecidos, o valor de uma obra…”; e que esse artigo nasceu do “ciúme e da inveja”; etc., etc. Este critério de estabelecer premissas sentimentais para ler os artigos que escrevi, premissas fora do controlo da racionalidade, é de uma absoluta arbitrariedade e labora, de propósito, em uma confusão de planos para os ler como mais lhe convém, a fim de me acusar de enxovalho e amesquinhamento da pessoa. Já fiz ver antes que pessoa e poeta não são o mesmo, de nada vale, porque assim podem sempre fazer-se de vítimas e responder com a faculdade biliosa: a faculdade que mais adeptos tem entre as pessoas que não são capazes de manter uma discussão ao nível da inteligência sem descer ao recurso do insulto, da arruaça, do despautério. Por isso, abandonam as alturas do cérebro e descem às da bílis, com as quais estão mais familiarizados e daí respondem. (De todos os frasquinhos de veneno que despeja sobre mim, um de somenos importância, ao qual gostaria de lhe responder directamente: a acusação de “indignidade gratuita”. Prefiro essa por dela não tirar qualquer proveito, porque a levo a cabo em nome de uma causa e de princípios éticos, do que ser apontado como protagonista de uma “indignidade interesseira”, como fazeis.) Fixe isto: em nenhum momento da minha intervenção pública na sociedade, seja nos artigos que escrevo ou nas atitudes práticas que tomo, está em jogo questões pessoais — essas deixo-as para conversas cara a cara, se por acaso se justificam e a outra pessoa quer nelas tomar parte.    
2.2 Em segundo lugar, acusa-me também de, insidiosamente, me esconder e não ter tido a hombridade de confrontar o poeta A. Salvado em vida. Alguns dos admiradores da obra de A. Salvado podem testemunhar como o que diz não é verdade — a minha testemunha já não o pode fazer. Não posso precisar o ano, de memória (mas não seria difícil confirmar nos jornais), mas que se situa provavelmente entre 1994 e 1996, um amigo meu (Eng.º António Manuel Lopes Dias), já falecido, fora convidado para a apresentação pública de um livro do poeta A. Salvado e convidou-me, se o queria acompanhar. Aconteceu essa apresentação no Instituto da Juventude e, após a apresentação do livro, houve participação do público e uma das pessoas que tomou a palavra fui eu e manifestei a minha discordância frontal em relação às palavras do apresentador do livro que dizia estarmos perante um grande poeta da língua portuguesa — apoiado em um depoimento da poetisa Natália Correia. Lembro-me que invoquei (algo muito semelhante ao que defendi nos meus artigos anteriores) a precocidade de tal juízo, que o tempo futuro é que se encarregaria de pôr a sua obra no devido lugar. E, se é verdade, que em alguns casos pontuais podemos arriscar (e sublinho a palavra risco) afirmar que a obra, como a vamos conhecendo ainda em vida do autor, parece desenhar a figura de um grande poeta — e dei o exemplo, à data, de Herberto Hélder —, parecia-me prematuro e de pouca acuidade crítica afirmá-lo naquele caso. Como do outro lado, da parte da mesa de apresentação, em particular pela pessoa do poeta A. Salvado, a crítica foi recebida como uma afronta pessoal e não como uma apreciação à obra e o confronto de ideias foi imediatamente despistado (por ser tabu esta forma franca de interpelação), nunca mais assisti a uma apresentação de um livro seu nem nunca mais me pronunciei sobre a sua obra.   
2.3 Desde o primeiro momento que afirmo estar de mente aberta para rever as minhas posições, desde que hajam indicadores objectivos e é isso que vou fazer. A presença de poemas de António Salvado nas duas antologias que cita valoriza a sua obra, aos olhos de qualquer leitor. A antologia de Cabral de Nascimento nunca a vi nem li (apenas referi o nome no seguimento dos critérios estabelecidos pelos antologiadores Jorge de Sena e depois Ramos Rosa, que era o cronológico — e que, na verdade, não é bem assim. Porque o período cronológico por data de nascimento, que J. Sena adopta e Ramos Rosa também, não foi, ao que parece, o de Cabral do Nascimento). A de Melo e Castro li (a 2.ª edição) e tirei notas de leitura, há anos, para propósitos que não os do assunto que aqui se confronta, ficou provado pelo seu artigo, que elas são incompletas e truncadas. Por isso, não só aceito a crítica como valorizo a obra — e agradeço o ensinamento.   
2.4 Surpreendente, de facto, é que classifique de “magnífica” a obra do poeta António Salvado. Então que adjectivos emprega para a obra de Fernando Pessoa, aquela sobre a qual arrisco escrever, incomparável em todo o século XX? E incomparável não só no exíguo país que é o nosso, mas no espaço literário europeu e, provavelmente, mundial. De resto, R. Zenith bem exprimiu essa grandeza desmesurada ao dar o título (a partir de um verso de A. de Campos) de “a little larger than the entire universe” a uma colectânea de poemas de Pessoa (ortónimo e heterónimo) que traduziu para inglês. Magnífico (ou sublime), para a minha escala poética, apenas F. Pessoa. Porque nenhum outro grande poeta português do século XX, mesmo aqueles que apelido de grandes, pode ombrear com a obra dele. Quererá, porventura, comparar a grandeza da obra de António Salvado com a de Camilo Pessanha, Teixeira de Pascoaes, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros, José Régio, Florbela Espanca, Vitorino Nemésio, Natália Correia, Miguel Torga, António Manuel Couto Viana, Alexandre O’Neill, António Gedeão, Carlos de Oliveira, Mário Cesariny, José Gomes Ferreira, António Ramos Rosa, David Mourão Ferreira, Luiza Neto Jorge, Ruy Belo, Sophia Andresen, Herberto Hélder, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Fernando Assis Pacheco… e pode, se quiser, continuar a listagem – pois aqueles que publicam a partir de 1970 não cito um único. Faça essas considerações da natureza magnífica (e sinonímia do termo) da obra de A. Salvado à mesa do café, nas colunas de um jornal de província, entre amigos ou então em tom de brincadeira, para desanuviar um ambiente pesado. Não o faça, com seriedade, para quem lê assiduamente poesia, tem capacidade crítica e um espírito comparativo minimamente lúcido, porque, ao fazê-lo, podem zombar e ridicularizar o seu juízo, em público. Com esse número de ilusionismo impressiona admiradores ou amigos (de lhes fazer descair o queixo de espanto) de fronte de um palco iluminado à medida dos seus desejos, onde coloca um herói literário com cotação de mercado em alta para o grupo de admiradores. Se faz esse número diante de uma plateia letrada arrisca-se a ser pateado.          
2.5 Não é por escrever, uma, duas, uma dezena de vezes que uma obra é grande e magnífica e, de seguida, ler isso em letra impressa que prova e convence, a quem quer que seja, da sua natureza. Esse juízo fantasista tem algo de semelhante à crítica de K. Kraus à diplomacia no ambiente hipócrita da 1.ª guerra mundial: “os diplomatas mentem aos jornalistas e acreditam na mentira ao lê-la.” E aqui substitua a palavra mentira, por ilusão ou fantasia — ou pela que mais lhe agradar. Porque se a grandeza da sua obra regulasse por essa bitola estaria presente em todas (ou na esmagadora maioria de) as antologias e seria caso de estudo nos balanços sobre a poesia do século XX ou nos ensaios de crítica literária (desde Jorge de Sena até Joaquim Manuel Magalhães ou outros críticos actuais). Como profundo conhecedor da poesia portuguesa, que diz ser (e eu tenho todo o direito de duvidar a partir do texto que escreveu e da nula capacidade crítica comparativa que mostra possuir), desvaloriza as evidências documentais, nega reconhecer que os dados objectivos dessa recolha não o autorizam a colocar a sua poesia nesse pedestal, nem de longe nem de perto. Em relação à obra de A. Salvado, faz exactamente aquilo que Platão tantas vezes denuncia no que toca à estrutura do ponto de vista: engrandece o que lhe é próximo, conhecido, estimado e diminui e despreza o que é alheio e longínquo. A não ser que os grandes poetas da língua portuguesa do século XX, na sua escala de sentido, sejam realmente às dezenas, às centenas, às pazadas, dando razão à ironia de Jorge de Sena ou, então, se tenha consumado o Supra-Camões de que F. Pessoa tanto fala e a crítica literária, por miopia intelectual prolongada, não o tenha ainda reconhecido. Até lhe digo mais: a sua seriedade na análise geral da obra de A. Salvado, ao apelidá-la de magnífica, goza exactamente da mesma seriedade com que alteraram o nome da biblioteca. 
E quanto a este assunto não direi nem escreverei nem mais uma palavra, enterro-o aqui. 
3. Vamos ao que interessa e a vós incomoda. Tudo o que expus até agora — repito, mais uma vez — é secundário, regional e até supérfluo, em relação à questão central: porquê a mudança?, que tal como está feita é uma usurpação do nome de Jaime pelo de António? Por que razões não respondem com argumentos à questão que me levou a protestar publicamente? A biblioteca perdeu o nome pelo caminho que vem da Praça Luís Vaz de Camões à Praça 25 de Abril? Sobre isso não aduz um único argumento, mas dá um bom indicador, que segue. 
3.1 Não posso estar em maior e mais frontal desacordo do que com as palavras de conforto que envia ao poder a louvar a atitude de “correcção e acerto” — claro sinal de subserviência, de palmadinhas nas costas e agradecimento —, em relação à mudança de nome. Só lhe falta dizer que o hemiciclo municipal tomou uma decisão de uma verticalidade moral irrepreensível, digna de se apresentar como exemplo à posteridade e figurar nos manuais de ética. De correcção e acerto não tem, em rigor, nada: vazaram no lixo o respeito que a obra e a vida de Jaime Lopes Dias representava (para a comunidade, em geral, para aqueles que escolheram o seu nome e, para quem estuda a região a partir da sua obra).
3.2 Um exercício que é difícil de imaginar para as pessoas que aprovaram e mais aquelas que estão de acordo e rejubilam com a homenagem é a troca de papeis: se, em vez de ser Jaime Lopes Dias, o nome da biblioteca fosse o de António Salvado e o poder local o trocasse traiçoeiramente, sem dar cavaco a ninguém, como é que a família e admiradores se sentiam? Enganados? Espezinhada a memória do anterior nome? Ou estariam alegres? Abriram um precedente grave (idêntico à caixa de Pandora) e não haverá lugar a escândalo se, de aqui a uns dias, uma dúzia de anos ou um século, outros figurantes do poder mudarem o nome para um vulto da área da cultura, que eles preferirem ou os amigos pedirem – ou pura e simplesmente que esteja na moda. Não me corre nas veias um pingo de sangue Lopes Dias, mas sinto a afronta e a malvadez que lhe fizeram como um acto de grande e descarada injustiça, de grande e descarada patifaria e é contra isso que os meus artigos e a minha voz se levanta e se levantará, de todas as vezes que achar oportuno. 

Leonel Azevedo 

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