Este site utiliza cookies. Ao continuar a navegar no nosso website está a consentir a utilização de cookies. Saiba mais

Cata-ventos: A voz dos cartazes

Costa Alves - 22/02/2024 - 10:01

Ando pela rua e não procuro; os cartazes impõem-se, sobretudo os de tamanho milionário. Nem que os olhos se desviem, o ambiente está criado - pense o que pensar sobre os hieróglifos que neles afixaram. Nos próximos dias, a voz dos cartazes será amplificada por motorizações alto-falantes de tapar ouvidos. E nem falo das ditas arruadas - palavra de uma fealdade que só jornalistas e quem está nesse pequeno círculo apreciam. Não há imaginação nem substância para democracia que seja sensível, inteligente, culta, estética. E não se atrevem a sopesar o que provocam: distanciamento, surdez, mediocridade, absentismo.
Ora leia o estendal de banalidades que tenho especado à minha frente: “Somos Europa”. “Portugal inteiro”. “Acreditar na mudança”. “O voto certo”. “Já não dá para continuar”. “Portugal precisa de uma limpeza”. “Futuro de confiança”. “Lado a lado com os portugueses”. “Um futuro com História”. Enfim, dizeres que se ensarilham quando tentamos decifrá-los. Banalidades em série a fabricar banalização.
Já estamos fartos de o saber: quem vê caras não vê corações. Sobretudo nos ecrãs televisivos onde as feiras das palavras se montam. Não temos emenda. Tudo está preparado para que continuemos de alçapão em alçapão em modo cada vez mais pimba. Resta-nos julgar a aparência do que (a)parece com o muito que não conhecemos nem nos esforçamos para conhecer. Então, vamos julgando pela maneira como trincam as palavras, pelos golpes trocados nos combates televisionados com uma muito treinada encenação de seduzir.
Julgamos com cultura de clubista, não com cultura cívica de ideias e afazeres para que se concretize em bem comum. Fixamo-nos nas tábuas de uma camisola ou nas truculências que a confusão instiga. E queixamo-nos dos suplícios de Sísifo a empurrar o rochedo que voltará a cair-nos em cima.
Gostamos ou não gostamos porque-sim ou porque-não, como se o porque-sim ou o porque-não fossem a cara ou coroa com que se apuram o bem e o mal. Mas, enfim, estando isto como está pelos olhos da cara, cá vamos tentando mostrar boa cara à má cara que temos vergada na alma. Muitas vezes, não conseguimos esconder as caras de caso, as caretas com que (nos) fingimos e, até, as carantonhas com que vamos disfarçando o que a vida cara nos obriga - cara querida vida, mesmo assim. 
Habituados a andar a sachar nas terras da precariedade, não descobrimos de onde poderá vir a emenda. Desistimos ou repetimos os mesmos gestos, ainda, e uma vez mais, iludidos. Temos tido maus governos e maus partidos, mas temos sido sofríveis cidadãos. Sofríveis e muito sofridos. A atualidade eleitoral só vem agudizar essa perceção. Isto de ser cara a cara com os problemas sai muito caro e cansamo-nos - pecador me confesso.
Deixámos que o empobrecimento da democracia a transformasse num combate entre frases feitas e não chegamos aos projetos de sociedade escondidos pelo nevoeiro dos slôganes. É imperdoável que nos tenham(os) enfiado neste buraco.
Enfim, larguemos esta carga e aliviemo-nos convocando outras caras. Caras de pau, caras de réu, caras de bacalhau, caras pálidas, caras de enterro, caras de caso, caras-metades, caras de mel com corações de fel. Lembrando que há bater com a porta na cara, não ter vergonha na cara, cuspir para o ar e na cara lhe cair. Enfim, situações que esta circunstância eleitoral tão bem denuncia.
Venha o que vier, Sísifo não se afundará na resignação. Continuará a empurrar o rochedo e um dia, espero, há de transpor a montanha. A condenação não dura sempre.

mcosta.alves@gmail.com

COMENTÁRIOS