Este site utiliza cookies. Ao continuar a navegar no nosso website está a consentir a utilização de cookies. Saiba mais

Cata-Ventos: Nós e a Matemática

Costa Alves - 28/12/2023 - 9:47

Aqui há tempos uma escola colocava em debate a seguinte interrogação: “Nós e a Matemática - será que somos burros?”
Passo por cima da frase feita sobre a pretensa (permitam dizer) burreza dos burros, pois creio que não é como a pintamos. Julgo, aliás, que devíamos pedir emprestadas ao burro algumas qualidades que quantas vezes nos faltam: persistência, lealdade, simplicidade, paciência, modéstia. E concluir: “Antes burro que me leve do que cavalo que me derrube”, como regista o adagiário popular. 
Ainda criança, o burro teimava em dar-me a mão e levava-me, sem cavalgadas nem vertigens, pelos caminhos sinuosos até às hortas dos avós, em Malpica do Tejo. Se a nossa sociedade apreciasse verdadeiramente essas qualidades, a matemática não seria vítima das desconsiderações que lhe fazemos e não seria a “grande seca” com que enformámos a nossa ânsia de vadiar pelas espumas da superficialidade. Ironicamente, a verdadeira grande seca (a grande seca pantanosa dos enormes problemas) continua a não ser enfrentada com políticas sábias.
Na perspetiva redutora das qualidades do burro, Einstein não era “burro” nenhum e sabia muitíssimo (e pouco) de muitas coisas; não só de Física e Matemática. Mas, como o filósofo Sócrates, também sabia que não sabia, isto é, quanto mais sabia mais achava por desvendar e converter em saber; só caminhando atrás do que não sabia podia fazer o caminho de lá chegar e chegar. Por causa disso, não admira que o criador da Teoria da Relatividade nos aconselhasse desta maneira: “Não se preocupem com as vossas dificuldades com a Matemática. Posso assegurar-vos que as minhas são ainda maiores.” As dificuldades de que fala Einstein, existem em qualquer das ciências e das criações humanas.
Gostamos muito, pois claro, de Fernando Pessoa e não sei se conseguiremos aplaudir o que o seu heterónimo Álvaro de Campos escreveu: “O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.” O poeta sabia que (a+b)n é igual a um mundo admirável de equilíbrio e potência, aberto à simetria e à fertilidade, um mundo multiplicador de dar, adicionar e potenciar. Ora vejam esta beleza: (a+b)2 = a2 + b2 + 2ab; (a+b)3 = a3 + b3 + 3a2b + 3ab2 e assim sucessivamente até onde for preciso. E lamentava, tal como hoje vamos confirmando com amargura: “O que há é pouca gente para dar por isso.” Isto é, enfiámos a Matemática num cubículo onde só conhecem os seus encantos os poucos que gostam de lá morar. Realmente, estamos enclausurados numa deriva que nos afasta das paisagens multiformes e coloridas que a Matemática pinta. Uma deriva que não dimensiona nem põe socialmente em relevo o valor da cultura matemática.
Não há duas culturas; há uma única cultura humana. Multímoda e pluridisciplinar. O Renascimento deixou-nos marcas sensíveis de pessoas com esta conceção. Galileu Galilei é uma delas. Conheceu e praticou música e pintura e fixou-se devotadamente na Física e na Matemática para inaugurar uma metodologia que nos conduziu para o conceito que dela passámos a ter. Galileu abriu portas a Isaac Newton; antes fora Copérnico a atingir por via matemática a perceção do heliocentrismo. E intuiu a prova física de que o Universo “está escrito na linguagem da Matemática”. Acabámos por reconhecer e continuar o legado de Galileu: a Ciência, tal como ficámos a entendê-la, só pode promover e prometer uma autocorreção contínua do seu conhecer. É da sua essência. Será que somos “burros”? Nem os burros são!
Post Scriptum. Passar o ano é um saltinho de pardal. Que seja bom em todos os seus dias!

mcosta.alves@gmail.com

COMENTÁRIOS