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Cata-Ventos: Ter e não ter vergonha

Costa Alves - 09/09/2021 - 10:28

Tenho uma (in)certa vergonha de me interrogar sobre a vergonha. É que há quem diga que já não há, que a vergonha foi sendo dissolvida pela chuvinha poluída que nos tapa os olhos de ver e de querer saber.
Apesar disso, ou por isso mesmo, confesso que prezo muito a vergonha. E acho que não é vergonha nenhuma tê-la na cara, nas palavras, nos pensamentos, nas emoções, nos sentimentos, nas decisões. E que não devemos disfarçar o rubor quando nos apanhamos, ou apanhamos alguém, a dizer ou fazer o que não deve. O pior é nem saber que a vergonha existe.
Na verdade, a vergonha não se compra nas farmácias, nos centros comerciais ou na televisão; muito menos nas redes ditas sociais. Mas, tudo indica que a falta dela se compra em muitos lados, sobretudo quando se ascende e se julga que tudo está ao alcance das suas ambições.
É um problema (não é?) resistir às tentações de puxar para nós, ou para os que estão nos nossos mais próximos arredores, o que não nos, ou lhes, deve pertencer. É um problema muito disseminado nestas sociedades instaladas na selva do egoísmo e da ânsia de poder com tantas ocasiões para fazerem o ladrão.
Sabemos como se fecham os labirintos da vergonha: “O primeiro pecado vence a vergonha, o segundo a dissimula, o terceiro a perde”. O ditado é claríssimo como água não poluída: a vergonha perde-se. Deixa de aflorar ao rosto, altera o significado de palavras e comportamentos e segue impante. Como se, não ter vergonha, fornecesse muito mais direitos e projeção social do que tê-la.
Há um ditado popular que faz pensar: “A pobre e a necessitado não compete vergonha”. Coloco-lhe algumas reticências. Na verdade, a vergonha a todos compete, embora saiba que não abunda a quem mais compete. Com as consequências mais que conhecidas. Percebo a precaução do adágio: o pobre e o necessitado não devem ter vergonha de pedir ou exigir dignidade às condições de vida que lhes impõem.
Todos sabemos isto, para mais em tempos que não querem detenção no trabalho de pensar e preferem a pressa de correr atrás da meia bola e força ou de andar a engonhar no país das meias tintas que adora distrair-se com aparências e passatempos. Sempre com o poder do dinheiro e o outro mais amplo, o poder do poder, a cirandarem por todo o lado. Lá diz o ditado: “Quem não tem vergonha, todo o mundo é seu.” Basta “muita cobiça e muita diligência, pouca-vergonha e pouca consciência”. Tem sido assim desde o fundo dos tempos e não há maneira de resolver esta inequação que torna a vida facílima para uns quantos e dificílima para a maioria.
Parêntesis: a nossa língua é tramada. Pouca-vergonha tem uma amplitude que ultrapassa muito as linhas vermelhas (como agora dizem, viralmente) da própria vergonha. Ocupa ecrãs, cartazes, notícias, falsas notícias, discursos, comentários, opiniões, autoelogios e nada lhe acontece. A pouca-vergonha é poderosíssima.
No meu fraco entendimento, se tivesse poder (abrenúncio!) decretaria que quem quisesse entrar em certos círculos, ou desempenhar certas funções, teria de frequentar um exigente curso de formação sobre a vergonha dado por gente à prova de pouca-vergonha. Seguir-se-iam testes ao subconsciente do que pode trair. Também seria eliminatório um teste final sobre cultura da vergonha com prova escrita e dissertação oral. Tudo avaliado com fórmulas que rejeitem magias de copiar e colar. Dirão que estou a brincar. E porque não? A brincar, a brincar talvez se consiga ir mais longe pelos caminhos do sério. A sério.
mcosta.alves@gmail.com

 

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