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Cata-Ventos: Aires de minha terra

Costa Alves - 14/01/2021 - 9:42

Lendo Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Ondjaki, saboreio o que acontece, também por exemplo, em José Craveirinha, Luandino Vieira, Baltazar Lopes, incluindo muitos escritores brasileiros: a introdução na língua portuguesa de vocábulos oriundos das várias línguas maternas dos seus países e de vivências em locais de diferentes geografias e ambientes culturais. É enriquecimento em todas as dimensões da vida nos espaços do falar português.
Bem sei que estamos contaminados pela utilização do inglês, mais como língua invasora do que como língua estrangeira. E os invasores colonizam.
Escrevia Manoel de Barros, grande poeta brasileiro: “Não sinto o mesmo gosto nas palavras:/ Oiseau e pássaro. Embora elas tenham o mesmo sentido./ Será pelo gosto que vem de mãe?/ De língua mãe?/ Seria porque eu não tenha amor pela língua de Flaubert?” E responde no mesmo poema: “Penso que seja porque a palavra pássaro em mim repercute a infância/ E oiseau não repercute./ Penso que a palavra pássaro carrega até hoje nela o menino que ia/ De tarde pra debaixo das árvores a ouvir os pássaros./ Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux/ Só tinha pássaros./ É o que me ocorre sobre língua mãe.”
Um dia o presidente do meu Instituto pediu-me para elaborar um “draft” do “memorundum of understanding” (tal qual) que iria ser aprovado numa reunião com o nosso congénere espanhol. Respondi: não sei fazer “drafts” nem, muito menos, “memorunduns of understandings”. Conhecíamo-nos bem e acabei por resolver a situação: se se trata de um rascunho de um memorando de entendimento, isso sei. Não era a primeira nem a segunda vez que o questionava para dobrar a língua em defesa do falar português. Era já um tempo epidémico em que não se cortava e colava. Fazia-se “cut and paste”. E não se imprimia: “printava-se”. Também me recusava a fazer “briefings”. Só conseguia pontos de situação. Mas a onda era avassaladora. E a informática tinha o terreno todo por sua conta.
Enfim, houve um governo que acabou com esta bagunça de colonizados pela informática do tempo e obrigou os fabricantes a inserirem essas indicações na nossa língua. No entanto, o mal estava cá e tem-se multiplicado. A televisão gosta e, se a televisão gosta, só meia dúzia de chanfrados, como assim julgam, é que não.
No léxico meteorológico passava-se o mesmo. Não se buscava a palavra ou a expressão equivalente em português. Exemplo: à depressão “cut off”, que se desprendia da circulação atmosférica de oeste e atingia a Península Ibérica, sobretudo em Espanha, com efeitos muito adversos, os meus colegas espanhóis chamavam “gota fría” - parece realmente, na nossa representação do fenómeno, uma gota que se desprende. Designava-a por “depressão desprendida” e a maior parte dos meus colegas não deixava de a nomear “cut off”.
Não podemos deixar encolher esta nossa língua que tanto pode. Continuando a diminuí-la, perdemos capacidade de pensar e de comunicar; perdemos inteligência. Como escreve Eugénio de Andrade, é “língua da fala;/ língua recebida lábio/ a lábio; beijo/ ou sílaba;/ clara, leve, limpa;/ língua/ da água, da terra, da cal;/ materna casa da alegria/ e da mágoa;/ dança do sol e do sal”.
Vasco Graça Moura falava com ela e dizia-lhe: “não és mais do que as outras, mas és nossa,/ e crescemos em ti/ nem se imagina/ que alguma vez uma outra língua possa/ pôr-te incolor, ou inodora, insossa”.
A poetisa galega Rosalía de Castro, descrevia a sua língua mãe como “Airinhos / Aires de minha terra”.

mcosta.alves@gmail.com

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