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Cata-Ventos: Feio, feieza, fealdade, feiura

Costa Alves - 21/03/2024 - 9:34

Não sei se vão aceitar que diga feieza para caracterizar o estado do mundo. Se apreciamos o belo da beleza, julguei que podia identificar o feio que há na feieza. Mais: designar por feiura a fealdade geral que nos comprime. Não julguem que estou apenas a brincar com as palavras. Por vezes, preciso de soltar dúvidas para conseguir que me levem a sério.
Que isto está feio, digamos de cortar à faca, é o que ouço e poucos duvidarão. Outra vez e mais outra, perfilando-se as demais que lhes antecederam já apagadas na lista do esquecimento. Se não andasse por cá há uns tempos e não tivesse vivido o que vivi, custava-me mais. Provavelmente, quem anda pela vida há muito menos tempo, talvez não lhe custe nem estranhe. Evoluiu dentro deste casulo e julgará que os dados foram lançados para todo o sempre e que a selva não tem conserto. A habituação esconde o declive por onde resvalamos julgando que não há declive.
Como a beleza se foi desembelezando, tornando-se quase microscópica, não admira que o feio, a fealdade, a feieza tenham evoluído para o estado sólido de feiura. Estado sólido, mas também líquido e vaporoso. Vejam que não dizemos feieza como antónimo de beleza, mas seria bom que reconhecêssemos a sua muito derramada fealdade. Não o fazendo, perdemos a noção de como é extensa e funda. E de como evoluiu para o estado de feiura, que será a feieza em estado de ditadura. O feio, a fealdade, a feieza escurecem-nos; a feiura anula-nos. Assim vamos, assim vamos pesarosos carregando os pesares.
No seu livro “História da Feiura”, Umberto Eco compara as propriedades do feio com as do belo achando que “é divertido buscar a feiura, porque a feiura é mais interessante que a beleza. A beleza frequentemente é entediante.” Enfim, outra maneira de enfrentar a questão. Dava pano para mangas e prefiro tomar o exemplo da feiura que respira em tantos quadros de Hieronymus Bosch. Feiura que fica na História da Arte como criação multifacetada de (máxima) beleza. Também recordo visões literárias inadjetiváveis do inferno que tento atenuar encontrando ainda na sabedoria popular outra maneira de o pensar: “O diabo não é tão feio como o pintam”.
Outro exemplo: “Homem rico nunca é feio”. A História antiquíssima de um mundo tão desigual só confirma o que sabemos dos demasiados poderes do vil metal. Nas suas mãos transmuta-se em belo tudo o que pode atrair. É uma pedra filosofal que raramente deixa de brilhar. Por mais amarga que seja a verdade, conhecemos muito bem os poderes desse metal nobre que a poesia de Francisco Quevedo crismou de “Don Dinero”.
Volto atrás para citar a psicóloga Joana de Vilhena Novaes, autora do livro “O Intolerável Peso da Feiura: sobre as mulheres e seus corpos”. Critica a “ditadura da beleza e da magreza” e reitera que as pessoas que não entram nos padrões de beleza do momento são rejeitadas e excluídas da sociedade. Construíram prisões sociais e bem sabemos que, como regista mais um ditado popular, “não há prisões lindas, nem amores feios”. Mas, a verdade é que as prisões ocupam cada vez mais lugar no mundo e os amores cada vez menos. Resta a coragem de reafirmar, contra a cultura da feiura em vigor que “quem o feio ama não quer saber da má fama”.
O melhor é fazer das tripas coração e procurar outros horizontes em que o feio se possa redimir dos seus pecados. Exemplo: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”. Mas o ceticismo leva-me a concluir que, amando a feiura, acharemos belo o seu domínio. E assim se cumprirá o seu desígnio: tomar conta de nós.

mcosta.alves@gmail.com

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