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Cata-ventos: A poesia espanta a pandemia

Costa Alves - 25/03/2021 - 9:39

A poesia é um bálsamo e uma bênção. Não sei como seriam estes meus dias sem ela. Ficava sem palavras e sem capacidade para tentar voar. Para me sentir, entender e sobreviver na reclusão. Ana Haterly acha que “as palavras aproximam:/ prendem-soltam/ são montanhas de espuma/ que se faz-desfaz/ na areia da fala.” E tanto que precisamos de palavras, palavras com olhos, palavras de olhos nos olhos, palavras nas mãos, palavras no olhar, palavras de genuíno sentir e comunicar, palavras desconfinadas, palavras que fazem voar.
Voar. Ana Haterly interroga-se sobre o que é voar voando com palavras. “Que é voar?/ É só subir no ar,/ levantar da terra o corpo, os pés?/ Isso é que é voar?/ Não./ Voar é libertar-me,/ é parar no espaço inconsistente/ é ser livre, leve, independente/ é ter a alma separada de toda a existência/ é não viver senão em não-vivência/ E isso é voar?/ Não./ Voar é humano/ é transitório, momentâneo.../ Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:/ isso é partir/ e não voltar.”
Vivemos a noite longuíssima dos dias que amanhecem abafados, circunscritos, resignados. Sem a liberdade com que devem amanhecer. Pergunta António Ramos Rosa no poema “O Boi da Paciência”: “Noite dos limites e das esquinas nos ombros/ noite por de mais aguentada com filosofia a mais/ que faz o boi da paciência aqui?/ que fazemos nós aqui?”
E responde: “Era tempo de começar a fazer qualquer coisa/ os meus nervos estão presos na encruzilhada/ e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante/ e a minha vida não é mais que um teorema/ por demais sabido!” Escrevia o poema em tempo de ditadura e era nesse xadrez que jogávamos na reclusão. Apenas lhe restava suplicar “Ó boi da paciência sê meu amigo!” É um poema para todos os tempos.
O boi da paciência sabe que o cansaço germina nas entranhas de quotidianos estagnados. O cansaço dói ao levantar, dói ao deitar, dói mesmo quando é de sonho o sonhar. Nem um passo pode dar, nem um rascunho abre caminhos. O cansaço ocupa tudo. Os horizontes não se têm de pé. Nem um pássaro vem beber às nossas mãos. Nem uma rua vem ter connosco.
Armando da Silva Carvalho dialoga com o cansaço. Diz-lhe: “Cresces. Vemos-te os pomos colados/ aos degraus. Já nem te sentas. (…) Aos poemas costumas fazer sono./ De noite, quando o mar está longe,/ magoas as palavras, debilitas os verbos”. Pede-lhe que não insista, pois “os homens coligam-se nas pragas/ cultivam certas flores/ no próprio ranho. Medem-te/ e fazem transações até para que existas.” Termina: “Ouve cansaço: apalpo-te as orelhas/ que intensas e comovendo os fracos/ me tapam o nariz./ O cheiro da comida é assunto diário/ em cada bairro/ e todos temos pressa./ Um faro luminoso acode-nos ao sangue/ mastigamos-te o mais prosaicamente:/ - tu tens de recuar.”
Resta-nos aguardar - sempre com o medo a marinar por dentro e a roer as folhas da esperança. Medo tão difícil de espantar, medo em todos os cantos destes meses e em tudo o que pensamos e fazemos. Medo que fecha os caminhos por onde podemos tentar singrar.
Não é fácil defender a esperança. Recorro à poesia de António Salvado para me orientar: “Aguardarás o tempo da vindima (…) . E faz da tua espera/ a certeza insuspeita de que um dia/ há de num copo rutilar o vinho.” A esperança tem sempre caminhos, textos que o vento não remove, janelas para o que há de vir. Não pode ficar confinada. E teremos sempre poesia: uma “força quente perscrutada,/ corpo de névoa, de imagem,/ com sulcos de tatuagem,/ voz absoluta escutada...”
mcosta.alves@gmail.com

 

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