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Cata-ventos: Bater com a língua nos dentes

Costa Alves - 28/01/2021 - 9:34

Pois é, acabou-se a conversa e, se há balanço a fazer sobre a campanha eleitoral, não nos doa a paciência. Fartaram-se de dar com a língua nos dentes e, como dantes, quartel-general em Abrantes; mas muito terá acontecido tanto à língua como aos dentes. Os dentes, vá que não vá, estragam-se ou partem-se e não é preciso ir buscar plásticos ao mar para os refazer; há-os por aí ao desbarato. Os processos de plastificação são conhecidos e fazem parte destes saraus. Mas a língua, senhoras e senhores, a língua sangra de tanto falar para o ar e vento de anestesiar. Sofre hemorragias, fica com o peito manchado e solta golfadas que deixam nódoas na alma.
É o que dá quando soltam a língua com uma tesoura nos dentes. Língua afiada, maledicente, insolente, língua que assalta e fere. Da conversa ao soalheiro à picareta falante, houve de tudo. Houve o sem nada para dizer e o dizer um bocadinho mais que nada. Houve o crónico lamber de autoelogios, o dize-tu-direi-eu e algumas tentativas de levantar problemas sérios logo abatidas por quem não quer que os abram. Também houve quem tenha posto palavras no lugar e logo foram apagadas. 
Houve um que tiroteava aí-vai-disto, pistola-metralhadora em riste e vociferante fogo de barragem para que do outro lado não existisse vivalma. Tenho de o referenciar mais explicitamente, é um aprendiz de Trump a bolsonarar por todos os poros da gritaria. A sua bebedeira verbal chegou ao ponto de visar um avô para insultar todos os avós. E até meter-se com batons, renegar a cor de quem o usa e escolher o lutuoso punhal negro do mais apodrecido machismo. 
A arena foi montada em televisão e, com apoio em redes sociais, não querem outra. À distância é que é. Assim se decide o que devemos pensar. Num ápice, sem delongas, preto ou branco, o que é complexo desfolhado em menos de um fósforo. A televisão não quer outra coisa. Quem tiver mais aptidão e descaramento para enfiar a conversa nos tempos e espaços que o ecrã concede, será o mais bafejado pelas simpatias epidérmicas dos eleitores. Enfim, quem não pode fazer mais nada, em frente do televisor, sujeita-se a ficar com os olhos cobertos pela areia dos seus arrasadores assaltos. É de uma democracia pobre.
Foi tudo muito pouco poucochinho e demasiado em demasia. Nenhuma ponte nasceu para dar frutos e, muito menos, para fazer futuro. Quem quiser democracia bonita, profunda, conhecedora, sábia, ética e estética, desvie daí o sentido. Só lhe resta aliviar frustrações a ver o Ricardo Araújo Pereira e concluir que “Isto é gozar com quem trabalha”.
Atravessei a ditadura fazendo o que pude contra ela e vem-me isto na rifa deste pavoroso agora. Recorro mais uma vez à sabedoria popular para me temperar: “Mente quem dá com a língua no dente.” E, com “língua comprida, mentira maior.” Claro que só virtualmente posso trazer a sentença deste outro ditado: “A má língua, tesoura”. No mínimo, língua mordida.
Claro que podia ser de outra maneira. Há demasiado muito tempo que o julgo, mas (não) tenho de me curvar: quem manda, manda, ponto final; até ver, esperando que não fique para as calendas. Mas há muitas formas de dar à língua sobre os caminhos do nosso futuro. Formas criativas e criadoras, analíticas e analisadoras, fundamentadas e fundamentadoras, respeitadas e respeitadoras. Formas limpas, sinceras, serenas, cultas, genuínas, abertas para muito menos pobreza, muito menos desigualdade, muito mais desenvolvimento sustentável.
Não melhoremos a democracia, não!…

mcosta.alves@gmail.com

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