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Cata-Ventos: Entre paredes

Costa Alves - 31/12/2020 - 8:57

Que ano este! Em janeiro e fevereiro, andava por aqui preocupado com a cimeira do clima, com desenhos animados que maltratam crianças, com fogos devastadores na Austrália, com o sucesso e o insucesso nas escolas e com as fugas dos papéis de Angola, que, além das relativas a Malta, Wiki, Swiss, Panamá, Football, todas eram “Leaks” e permitiam conhecer algumas das insuportáveis baixezas que estragam o mundo.

Chega março, março marçagão, e todas as preocupações são varridas para se concentrarem numa epidemia que salta continentes e oceanos e estabelece um pandémico pandemónio mundial.

Aprendemos, então, a ficar em reclusão coagidos pela necessidade. Não sei porquê, os telejornais não decretaram que estávamos em “lockdown”. Vá lá, safámo-nos dessa tortura vocabular e passámos a estar, portuguesmente, em confinamento. Foi uma pequena sorte grande idiomática que nos saiu. Já viram como era se, palavra sim, palavra não, transportassem o “lockdown” no seu falar? Ainda me pergunto por que cargas de água os canais de televisão, contra os seus costumes, desprezaram esse anglicismo, não o acrescentando à longa fila dos que tanto usam e abusam.

Em março, era tal a nossa fixação na epidemia que nem notámos que um homem tinha sido torturado e assassinado em instalações do Estado por funcionários seus. Não havia aquelas imagens e aqueles sons que, em maio, vieram provocar a indignação de todo o mundo, quando vimos e ouvimos o que fizeram a George Floyd numa rua de Minneapolis.

Aqui, tudo ficou entre paredes. Íamo-nos manifestando contra o racismo, mas não sabíamos, não interiorizávamos ou não valorizávamos o que, ao nosso lado, também acontecia com extremos de hediondez. Tortura e homicídio por agentes de um serviço do Estado. Provavelmente, não queríamos acrescentar mais perturbações ao já tão perturbado quotidiano. É assim a (in)civilização de hoje; só cremos se virmos. E, como não vemos o que se passa debaixo da mesa ou em obscuros compartimentos de abuso, o que não vemos não existe. Era, confirmamos agora, mais um assunto para ficar no sigilo das águas de bacalhau, mesmo perante a persistência informativa de dois ou três jornalistas. Envolto em mantos de obscuridade, o trágico não seria visto como trágico. Seria apenas uma morte anónima que nem suscitaria comunicação de culpa condolente à família.

Nove meses depois, com as barbas do escândalo político a arder perante o testemunho da viúva, só então, governo e presidente da República vêm atirar algumas lágrimas de crocodilo aos olhos da nossa vergonha. E o ministro até se autocondecora, patético e indecoroso, com o medalhão do que não fez.

Lágrimas verdadeiras, assim julguei, vi-as a saltar dos olhos da ministra da Saúde, a propósito da pandemia. Às vezes, a feminina natureza faz uma grande diferença na política. Lembrou-me que ainda pode haver sensibilidade e contrastou com o jogo patético de sobrevivência do ministro. Mas, como vi um grande amigo contrair covid na ala não-covid do hospital e falecer, já não sei o que dizer sobre lágrimas. Mundo este em que já não sabemos destrinçar o que é imperdoável!

Tanto haveria a dizer a fechar o ano, mas o que está a ferver tão próximo tem muita força. Só agora me lembro do que já consta no anedotário do ano: a lixívia e demais venenos que Trump injetou e, claro, a cloroquina dos negócios de Bolsonaro.

Fecho estas linhas evocando quem tanto pensou o nosso país: Eduardo Lourenço e Gonçalo Ribeiro Telles. Continuar a lê-los e pensar. Esta pandemia não pode fechar-nos entre paredes.

mcosta.alves@gmail.com

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