Conheço muitas vedações e, quando mais uma se ergue, é como se fosse a primeira. Foi com este estado de espírito que recebi a notícia da criação de um fosso e a implantação de uma vedação na estrada que há séculos liga Malpica do Tejo ao rio que também corre no nome da aldeia. Uma estrada impregnada de memórias de vidas e de relações com a natureza e a história.
No meu caso, também memórias de caminhos de avós, pais e tios. De avô que corajosamente salva foragidos da guerra que, no outro lado do rio, desaba sobre quem não pertence ao campo franquista. Também memórias de relacionamentos com Herrera de Alcântara e de vocábulos castelhanos que Malpica do Tejo (e não apenas Malpica) integra no seu reduto de isolamento, tão longinquamente a 20 quilómetros de Castelo Branco.
Com crédula ingenuidade, ponho as coisas neste pé: desde que o tempo é tempo nesta aldeia, a estrada liga-a ao rio que, repito, luz no seu nome. Por aquele caminho atravessam o rio, vão a Herrera de Alcântara, festa lá, festa cá, sempre com relacionamentos que persistem entre aldeias magoadas pelos mesmos esquecimentos.
Há 21 anos, deram a estes caminhos para o rio cuidados e obrigações de Parque Natural do Tejo Internacional merecendo fanfarras de Primeiro-Ministro (António Guterres), novas atividades, novo ancoradouro e perspetivas de ainda mais relação entre a aldeia e o seu rio.
Dentro de mim, a criança aponta a nudez do rei: alguém pode impor-se como proprietário de caminhos que são historicamente de todos? Alguém pode apagar as evidências memorizadas (e documentadas) de um bem público e impedir que continue a ser o que tem sido? Alguém pode impedir percursos, sendas, pontes que relacionam a aldeia com o rio e com o lado transfronteiriço que viveu história com ela?
E a criança conclui: a decisão virou-se para o lado do prevaricador. Em vez de impedir e punir quem se permite abusar do senso histórico enjaulando aqueles caminhos, o Estado concede-lhe prevalência em direitos que só podem ser explicados por ter a opção de fundo de conceder primazia ao privado em desfavor do bem comum. O que seria um caso de polícia, por barragem de caminhos públicos, foi substituído pela incompetência da Câmara Municipal na defesa do que lhe competia entregando o ouro ao bandido. Quem estudou o processo arrasa a paupérrima resposta camarária que possibilitou a decisão judicial favorável a quem não devia. A criança aponta a nudez dos reis e reizinhos que fazem frívola esta república.
Já me tinha deparado com vedações como a que foi montada na estrada que liga Malpica do Tejo ao Tejo do seu nome e da sua história. A tal criança também ficou de boca aberta quando se defrontou com as muitas muralhas que epidemicamente vieram fechar os caminhos públicos de acesso à albufeira de Santa Águeda/Marateca. A operação cerejal abriu a porta e o interesse privado impôs-se ao bem público e, como é costume, o Estado não tugiu nem mugiu.
E há mais notícias desta epidemia de cortar e vedar. Em Idanha-a-Nova, Rosmaninhal, Escalos de Baixo, S. Miguel D’Acha soltaram-se queixas do mesmo teor e não houve quem as recebesse. Realmente, a dura lex não é imparcial em matéria de vedações. Neste caso, dependeu de um município que trabalhou a questão sobre o joelho não cuidando de conhecer o valor jurídico do uso histórico, do usucapião secular pela comunidade ou do direito consuetudinário.
Dizem-se condoídos com o despovoamento do Interior, mas estão sempre a roubar-lhe raízes e capacidades de repovoamento.
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