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Cata-Ventos: Memória do Zé Noco

Costa Alves - 01/02/2018 - 10:08

O Zé Noco não anda pelo passeio. Estou a vê-lo no fundo da memória e não sei como surge nestas linhas, assim, desempoeirado do subsolo de um tempo que se foi afastando para tão longe. Surdo-mudo, agita jornais atravessando a Devesa (não são “docas”, por favor!), o Passeio Público (já não é) e qualquer meio da rua. Não sei se os pretende realmente vender, ou se se limita a defender, com gestos inúteis, a sua dignidade para que não julguem que se trata de apenas caridade ou truque de arrumador de carros, em tempos que hão de vir, a quem, ofereceremos euros sem querermos saber para quê.
Perante as inesperadas investidas de jornal na mão do Zé Noco, os carros buzinam, continuam a buzinar, e ele, continua teimosamente na sua, como eu continuo na minha, hoje, aqui, tecla a tecla, com a Maria Bethânia sambando na minha companhia.
Estamos nos anos de 1950 e 60. A cidade é metade, ou menos de metade da de agora, e tem pessoas conhecidas de todos; algumas são mistérios por abrir. Há professores no Liceu Nun’Álvares que sobressaem pela novidade da atitude pedagógica e de pensamento. Por exemplo, no dia que se seguiu ao da manifestação pela candidatura de Humberto Delgado, realizada na Covilhã, um deles apresenta-se na aula com a testa ostentando pensos adesivos cuja origem facilmente deduzimos. Imaginam como cresceu a consideração e estima que esse professor já ganhara por nos trazer uma Matemática mais apreensível e mais dentro das experiências das nossas vidas…
Descobríamos a Oposição ao Estado Novo. Mas, os ventos novos, que esses professores sopram, não entram nas casas e nas mentes de todas as camadas sociais. Quem realmente entra, é pobre, sobrevivente, familiar de quotidianos e fermentador de curiosidades e estranhezas. O Zé do Sono, o Guilhermino, o Zé Gavetas, o Albino-dos-Jornais, o Zé Noco. Esquecerei certamente algum.
Surdo-mudo, já o disse, o Zé Noco suscita muitas interrogações. Num primeiro olhar desprevenido, julgo que tem uma particular inclinação para andar no meio das ruas - parece uma artimanha de vendedor dos jornais que exibe nas mãos. Ou será uma simples provocação para enfrentar o nervosismo dos automóveis que não querem tropeçar no seu estranho deambular?
Venho a verificar que não é assim e por que razão não põe pé nem agitação de jornais (“O Século”, “A Bola”, “Diário de Notícias”) em espaço de qualquer passeio. Vou aprendendo a máxima socrática de nunca sabermos o todo do que julgamos saber que sabemos. Ou então, puxando a poesia de Alexandre O’Neill, “se a noite é nada e os grilos/ não estão de asa parada,/ não vou puxar, só por isso,/ o fio à sua meada”.
Venho a saber que (era uma vez um dia do mais recuado das ruas da minha infância) o Zé Noco lá vai, mais uma vez, passeio adiante, com os sons bem guardados na caixa dos grilos - talvez daqueles que o O’Neill poetizou - e as mãos a agitar jornais para que alguém o possa ouver (ainda não há televisão naquele tempo). Vai daí, vem um carro e zás, pimba, violência travestida de metal a atravessar as sombras da sua estranheza. O carro abalroa a sua surda mudez em pleno passeio onde supunha que carros nunca haveriam de trepar.
As consequências resumem-se nesta sua decisão: no passeio nunca mais! Nunca mais o Zé Noco agitará parangonas de jornal onde se anda sem carros. O seu deambular será, de ora avante, pelo meio da rua e nunca mais será atropelado. E, quanto mais os carros buzinam, mais o Zé Noco se sente no seu passeio.
mcosta.alves@gmail.com

 

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