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Cata-ventos: Vidas em escombros

Costa Alves - 25/02/2021 - 9:59

O romance que acabo de ler, “A Ocupação”, edição da Companhia Das Letras, publicado em 2019, pode ser uma boa ilustração do ambiente vigente no Brasil, e no mundo em geral, no ano que precede a catástrofe pandémica que estamos a viver. O autor, Julián Fuks, vencedor do Prémio José Saramago de 2016 com o romance “A Resistência”, centra a sua narrativa numa cidade de São Paulo em que “a perversidade (…) manifesta em insignificância a sordidez replicada mundo afora todos os dias, numa infinidade de esquinas.”
Uma das esquinas é um hotel em ruínas onde ocorre “A Ocupação” dando relevo a um movimento de “refugiados em país próprio”. O narrador entra e vai ouvindo: “não sabem que somos todos refugiados, não sabem com que força os refugiados se fincam na pedra, como chega fundo a raiz do desterro.”
Um dos ocupantes, Najati, é um sírio fugido da guerra no seu país e que “hoje só ouve as bombas, já não ouve as laranjas caindo na terra seca”. Procura o narrador e interpela-o: “Disseram-me que você escreve sobre exílio, sobre vidas desgarradas, sobre árvores cujas raízes estão fincadas a milhares de quilómetros”. A relação aprofunda-se e procura captar o drama de fundo. Em Najati, “não lia a guerra, a destruição, a ruína maior em sua dimensão histórica. Era nas pequenezas quotidianas que se revelava a imensidão da desgraça.” Sentia que o refúgio de Najati não se concentrava no quarto ocupado do antigo hotel em ruínas. Estava algures em itinerários desconhecidos da família na sua Síria dividida e devastada pela guerra. “Aquilo não era um homem, era só as suas ruínas.”
O narrador circula pela cidade em busca de matéria para o romance que persegue. Mas tem sempre presente a preocupação pela evolução da saúde do pai, “empurrado sobre uma maca, ouvi as rodas que guinchavam contra o piso do corredor, observei o semblante sério dos enfermeiros que o transportavam”, também ele “um corpo soterrado em seus próprios escombros.” Serenamente, o pai sussurra-lhe com apreensão: “Não sei o que fazer depois da morte”. É psiquiatra e sobreviverá. Ainda saberá o que fazer com a vida.
Ginia, haitiana, sobrevivente do terramoto que devastou o seu país em 2010, também ela com teto nas ruínas do hotel, explica-lhe que “tentava ouvir a voz da minha filha, ouvir o seu grito vindo de algum lugar, das entranhas da terra que tentava nos engolir, (…) ouvir a voz que nunca mais ouvi”. E suplica ao escritor: “ponha algo mais que a dor, algo mais que a desgraça, se quiser escrever qualquer coisa que valha a pena.” 
Volta a casa e vê o seu primeiro filho deixar de o ser malbaratado por um aborto espontâneo que deixa fissuras emocionais difíceis de superar no casal. Também ele era um “ser em estado precário, um corpo soterrado em seus próprios escombros”. Ambos irão equilibrar-se e caminhar, apesar do “retorno paulatino do país ao seu passado autoritário.” 
Mia Couto ocupa um dos quadros da história com uma carta onde, a propósito do “retorno paulatino do país ao seu passado autoritário”, revela: “Os ditadores desse tempo eram soturnos e calados. Alimentavam-se do silêncio que impunham sobre a vida. Os ditadores de hoje são papagaios ruidosos. Falam alto para não se escutarem a si mesmos e assim poderem voltar a mentir quando têm que se desmentir. Querem ser maiores do que o regime em que se deitam.”
Partindo deste quadro de vidas “em escombros”, não imaginávamos, em 2019, que este mundo haveria de cavar mais fundo a catástrofe social em que estava enredado e viria a confinar-nos num futuro ainda mais incerto.

mcosta.alves@gmail.com

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