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Crónica: Debita Nostra LXXXVIII

Luís Costa - 30/05/2018 - 10:16

Qualquer ação que tenha em vista opor o possível ao provável, isto é, ao porvir objetivamente inscrito na ordem estabelecida, tem de contar com o peso da história reificada e incorporada que, como num processo de ‘envelhecimento’, tende a reduzir o possível ao provável.” (Pierre Bourdieu, “O Poder Simbólico”, pp. 101).
Suponhamos que um dia me proponho decorar uma sala, começando por colocar a minha moldura preferida. Todas as restantes posições, em função das anteriores, se conformarão à do objeto pioneiro. E, se um dia o retirar, qualquer um poderá facilmente constatar: falta ali um quadro.
Suponhamos ainda que, por geoestratégica, um país cede parte do seu território, a uma potência beligerante, para a instalação de uma base. Serão as relações sociais, os usos, os alojamentos, os fornecedores, o pequeno comércio, tudo o que é local, a ajustar-se à nova realidade. Pode um dia desaparecer a necessidade que a instituiu sem que, por isso, desapareçam as necessidades por si instituídas.
É a este fenómeno que Bourdieu chama o “peso da necessidade instituída nas coisas e nos corpos”, resultante de qualquer processo histórico-social e que, na conjugação de duas circunstâncias, se conluia no que alguém já chamou de ‘poder de primogenia’.
Por um lado, a vantagem (institutiva) de quem, por qualquer razão, pode ser o primeiro na oportunidade de decidir. Por outro, a vantagem (reprodutiva) que lhe advém do facto de o decidido, ganhando existência, gerar a sua própria necessidade.
Ora, é aqui que reside esse imenso poder (tanto mais eficaz quanto menos palpável) capaz de naturalizar o assim necessário, mesmo que à custa do que seria o suficiente. É a ele que Bourdieu atribui o condão performativo do provável, contra a insurgência do possível. Esta ficará então dependente do bastante contrapeso e da esforçada capacidade de o reunir.
Vem isto a propósito da crise das democracias e do seu liberal pressuposto de que quem não se revê nas alternativas em presença ‘pode’ sempre criar outra. O que, só por si, seria contraditório com a generalizada opinião sobre a ‘política’ e os ‘políticos’ e a consequente atração pelos populismos (DEBITA NOSTRA LXXXVII).
É que, estando o ‘poder de primogenia’, hoje, sobejamente caricaturado nos pequenos poderes em que se especializaram os aparelhos partidários, nem por isso condimenta menos o caldo de cultura de que duplamente se sustenta a inflação populista.
Por um lado, o seu contrapeso nunca poderia ser mais do mesmo. Contorna, assim, o costume democrático e apela ao ‘gosto’ popular, mesmo que à custa de qualquer visão estratégica ou ética da responsabilidade. 
Por outro, é ele que se entrincheira nas formalidades e trata de populista tudo o que lhes contrapõe o espírito da democracia. Sobretudo, se coloca em causa a corrente razão económico-ideológica que “devastou alternativas”, aspirando ao pensamento único

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