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Crónica de primavera, num país em fogo (Às gentes do Pinhal Interior)

Fátima Lopes Cardoso - 27/06/2017 - 11:04

Da estrada altaneira vê-se toda a aldeia, esquecida no silêncio das searas quase maduras. Talvez já nem sejam searas e os meus olhos habituados à cidade não consigam distinguir plantações de trigo ou centeio de ervas bravias.

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Da estrada altaneira vê-se toda a aldeia, esquecida no silêncio das searas quase maduras. Talvez já nem sejam searas e os meus olhos habituados à cidade não consigam distinguir plantações de trigo ou centeio de ervas bravias. Ao longe, ouve-se alguém chamar um nome; a voz anónima dá uma ordem à filha para a vir ajudar nas tarefas domésticas; as casas e os palheiros de xisto com algumas paredes em ruínas denunciam o abandono, que contrasta com as novas moradias de quem regressa, arrependido das barafundas urbanas. Há muito tempo que não parava aqui, nesta terra de minha mãe. Há meia vida que não cheirava este odor de campos sem dono, de ribeira sem água, de terra sem gente.

Desço ao encontro das memórias que foram a minha infância. Deparo-me com as ruínas da casa dos meus avós, a casa de minha mãe. Atravesso o pátio abandonado e rompo um caminho entre ervas bravias. Resta a roseira, que continua tão viçosa como era há 30 anos. Recolho um botão de rosa. Encosto-me na sombra de uma romãzeira, outra sobrevivente do que foi este jardim, habitado de gente; de jovialidade e alegria. Procuro outras flores que já não existem e que pintavam de cor este pátio rural. Tento ressuscitar imagens do que deveria ter sido este lugar muito antes de eu nascer. Não encontro. Refugio-me nos relatos maternos. São insuficientes, mas insisto.

Conte-me mãe. Conte-me o que aqui viveu. Confessou-me que foi tão feliz, mesmo que a vida tivesse sido tão dura desde cedo e lhe tenha roubado a oportunidade de ser alguém mais do que é, que já é tanto. Do dia em que se despediu do seu tio mais novo, que partiu para o Brasil, tinha a mãe onze anos. «E agora tio, quando volto a vê-lo?» Não voltou. Foi uma despedida sem regresso. Das brincadeiras com os sete primos da casa ao lado, das lembranças que guarda de cada um. E das suas cinco irmãs e do seu irmão gémeo. Tanta gente em tão pouca terra. E agora, tanta terra com tão pouca gente.

Fecho os olhos. Surgem imagens do avô, com o seu bigode à Fernando Pessoa e uma das mãos suspensas na bengala, enquanto a outra puxava o rabo ao gato, apenas para me irritar, enquanto ele ria com um sorriso de velho que recupera segundos da infância. Vejo as bonecas de trapos que a avô costurava, quando eu me queixava que não tinha brinquedos. Não foi há cem anos, não. Foi há trinta. A mãe acreditava que gastar dinheiro em brinquedos era um desperdício, pelo menos para quem tem três filhos para criar. Aquelas bonecas com os sorrisos suspensos num pau de esteva deviam ser as descendentes das bonecas que os anos de menina lhe emprestaram para brincar.

Encerro o discurso neo-realista, que caiu tão em desuso nos tempos politicamente correctos e anti-românticos em que vivemos. E deixe-me recuperar na memória as sensações e as impressões do que foi este lugar. A sua terra, mãe. A sua casa. Sempre tão caiada de branco e agora tão descuidada. Conhecia-a sempre em festa em cada Páscoa. De dia, a casa cheirava a bolos, broas de mel que até eu ajudava a preparar. Nada era tão divertido como prometia ser e, tal como hoje, os dias de festa terminavam demasiado cedo. À noite, a casa não chegava para tanta gente e às meninas restava-lhes as camas do sótão. Com o som da música ao longe, espantávamos o sono com gargalhadas. Tornei-me a contadora de histórias preferida das primas. Pela noite dentro uma história, mais outra e outra. Não sei quantas vezes repeti o conto do Macaco do Rabo Cortado. Hoje, essas mesmas histórias sobrevivem na minha memória e herdei desses dias a minha vontade de escrever.

Este ano, cheguei, precisamente, depois de a festa terminar; já todos tinham partido. Vim no encalço de um festim perdido há décadas e agora recuperado por um grupo de jovens entusiastas. Cheirava a folhas de eucalipto, cheirava a festa do passado. Encontrei as pessoas entregues aos últimos momentos de ócio. Surpresas, mas quase indiferentes à minha passagem. Dos que contava encontrar, metade já tinha partido para outras terras. Era como se nunca tivesse pertencido a este lugar sem tempo.

Levava na mão o meu filho pequeno, quis mostrar-lhe a terra da avó. «Onde é a festa mamã? Mostra-me a festa.» Mas a festa já tinha terminado. A sensação era a mesma dos dias de encantamento que aqui vivi. Esperava sempre algo mais do que acontecia, neste lugar onde o tempo se extingue.

Voltamos para o ano. Talvez antes de a festa terminar. Preciso da sua memória mãe para compreender o encanto deste lugar que os seus afetos não deixaram esquecer.

 

COMENTÁRIOS

Marciana Cardoso
à muito tempo atrás
Fátima eu que continuo a ser uma das que fiquei por cá, penso que o que me faz amar isto é o poder construir aqui um pequeno mundo que é só meu (gosto de silêncios ou solidão) adoro passear e sentir a natureza, animais, sentir cheiros e sobretudo lembrar e sentir os meus que já partiram e aqui por entre montes, vales e nesta terra já sem gentes sinto que ainda os tenho comigo, bjinhos e obrigada pelo belo texto em que salvo erro falas da Murteirinha (aldeia da freguesia a que pertenço?