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Crónica: Debita Nostra CCXXVIII

Luís Costa - 08/02/2024 - 9:14

"Justiça seja feita: o eleitorado ainda tem a escolha destes últimos deputados. Ou seja: escolhe quem vence, mas não escolhe quem o representa. (...) O mais provável é que a maioria dos deputados eleitos pertencesse aos partidos estabelecidos. São eles que têm nome e meios, profissionais de campanha, história e interesses estabelecidos, referências de classe, religião, origem ou doutrina.” (António Barreto, “Sonho de uma noite de Inverno”, PÚBLICO, 20-01-24). No pressuposto de que a democracia é a forma política mais conseguida de regulação das relações de poder (DEBITA NOSTRA CCXXVI e CCXXVII), importa agora considerar o modo como estas lidam com as críticas à democracia. Nomeadamente, quando se escudam numa visão mecanicista da fórmula democrática, protegendo-se do instrumento de ajuste político que ela sempre quis ser. E uma das maneiras por que o fazem é o de pretenderem que as críticas à democracia só podem chegar da preferência por um outro regime (falhado, preferivelmente). Como se, nas eleições americanas, a ideia de que Biden é um mau candidato só pudesse resultar de um apreço por Trump. Isto para esclarecer que a minha referência a Singapura, que recentemente visitei, não exprime aqui qualquer admiração pelo seu sistema político: quer no que diz respeito ao privilégio com que trata os seus naturais, quer quanto ao seu caráter mais autoritário. Um autoritarismo em que dificilmente cabe a liberdade com que nos habituámos a decidir quem ganha eleições, mas onde tal também acontece por uma especial razão: os singapurenses, em geral, sentem-se representados nos seus governantes. O que me sugere que a representação política pode ser como as duas faces de uma única moeda: aquela em que decidimos quem nos representa e aqueloutra de quem tudo faz para nos representar. Com tradições em que este compromisso (accountibillity) se encontra bastante acautelado (Barreto). E me desperta para o que, no “mercado” eleitoral (Schumpeter), parece ser um ‘imposto’ que o liberalismo nunca deixou de cobrar. Pelo ‘culto da individualidade’ que, a crescer desde o séc. XVIII, atinge hoje o paroxismo na ‘ciência política’ das redes sociais; pelo mito de que o equilíbrio social há de brotar de uma liberdade, em abstrato, que a todos nos imagina com igual poder. Porém, o que há mesmo para representar não são as nossas idiossincrasias individuais. São projetos de sociedade gerados no entendimento de que (con)viver é sempre um compromisso que só pode resultar de uma cidadã maturidade. Os quais, por difíceis, não podem ser deixados ao abrigo de impulsos nacionalistas, de cativantes elucubrações, da sua ‘liturgia’ comunitária. E não. Não estamos todos em pé-de-igualdade quanto ao “nome e meios” com que, em tão ‘exigente’ mercado, se pretende concorrer. E enquanto a nossa ‘crença’ nos (re)partir pelo “salve-se quem puder”, não será a “mão-invisível” que nos virá colar os cacos."

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