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Crónica: Debita Nostra CLIII

Luís Costa - 23/12/2020 - 9:14

"Chegou-se ao ponto de pretender classificar os indivíduos, os grupos, as sociedades e os governos a partir da divisão binária ‘populista’ ou ‘não populista’. Já não é possível que alguém manifeste a sua opinião sobre um tema qualquer, sem tentarem classificá-lo num desses dois polos: umas vezes para o desacreditar injustamente, outras para o exaltar desmedidamente.”  (Francisco, Fratelli Tutti, pp. 41-43,).
Não creio que os primeiros ‘teóricos’ da democracia, ou os que por ela se sacrificaram, pudessem hoje esquivar-se ao labéu de populista com que se premeia a menor proposta de alteração das rotinas em que o seu sonho se enredou. Tanto mais, quanto lhes coube a árdua tarefa de deslocar a legitimação política do campo do transcendente para o da “vontade popular”, por mais difusa que fosse a sua conceção.
Ora, isso deveria alertar-nos para os perigos de nos querermos fechar na ‘segurança’ da ‘ordem’ social estabelecida, como se firmados na evidência empírica de que qualquer ordem conseguiu, alguma vez e em definitivo, preservar-se.   
O que não quer dizer que corramos atrás dos que iludem o projeto democrático, em nome de interesses obscuros e à custa de qualquer visão estratégica e ética da responsabilidade. Ou nos entreguemos à esforçada prossecução de coçados rituais ou à mais espevitada coleção de pontilhadas ruturas identitárias. Não me parece é que, sob a ameaça da pródiga classificação de populismo, nos possamos conter em formalidades. E, atendo-nos à letra, recusar tudo o que pretenda contrapor-lhes o espírito da democracia que, mais do que resultado histórico, é um processo inacabado. 
Certamente que, pelo seu caráter representativo, a democracia se prestou muitas vezes a que, em nome da capacidade de representar, se distorcesse o favor dos representados. Não faltando, hoje, quem pretenda fazer confluir o descontentamento destes com a ideia de contornar os ‘empecilhos’ da exigente conduta democrática.
Porém, também sempre houve quem entendesse que a democracia se prestaria tanto menos a uma formal conveniência quanto mais se investisse na educação e capacitação dos que havia que representar. Já que, sem a sua participação, “a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencarnando porque deixa fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na construção do seu destino.” (Fratelli Tutti, pp. 45).
Daí a importância destas não-envergonhadas reflexões globais e de que a sua leitura se não quede pelo rebusco das citações avulsas, se perca no catálogo das liminares rejeições ou se reserve para os espaçados interlúdios de uma tranquilizadora contemplação.
A democracia é seguramente o regime que melhor nos permite continuar a esgrimir mais ou menos interesseiros argumentos ou desenvolver mais ou menos generosos projetos. Mas, a não ser nos ideais de uma societária ‘monotonia’, quem poderá recusar-lhe o ‘golpe-de-asa’ que parece só estar ao alcance dos humanos “de boa vontade”?!

 

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