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Crónica: Debita Nostra CLIX

Luís Costa - 25/03/2021 - 9:38

"O realismo, ou miguelismo popular, configurando o moderno populismo, foram sem dúvida uma das facetas mais interessantes do reinado de D. Miguel e das chamadas lutas liberais sem serem por isso um fenómeno exclusivo de Portugal, tendo mesmo grandes paralelos com outros movimentos congéneres da Europa do sul, em particular em Espanha com o carlismo e em Itália com o brigantaggio.” (Fátima S. e M. Ferreira, Público, 24 de agosto de 2020).
Talvez que um olhar sobre a nossa própria história nos ajude a perceber o aparente paradoxo do levantamento do “povo” contra o “livre” apuramento da “vontade popular”. Mas, sobretudo, a melhor precisar o próprio conceito de “povo”, em benefício da democracia representativa, na sua fundamental busca pela interpretação de tal “vontade”.
O “povo” foi ‘tido’ pelo liberalismo em sentido muito lato. E, no seu rompimento com as fórmulas do Antigo Regime, tendo por base uma abstração que, em concreto, descuidava as condições para a liberdade (DEBITA NOSTRA CXLIII). Muito provavelmente, por inércia daquelas mesmas fórmulas, como a da tradicional arrumação da sociedade, em que apenas cabiam um Clero, uma Nobreza e um Povo, mas não as aquisições sociais da modernidade.
Em detrimento, porém, de uma mais concisa ideia de “povo”. Aquela em que, por regra, se incluem os estratos sociais mais condicionados, nos seus recursos, mais subalternizados, no seu estatuto social, e, frequentemente, associados à preservação de uma identitária memória cultural.
Categoria que, embora ‘romantizada’ pelos liberais, nem por isso deixou de ser a mais exposta às restrições censitárias do voto, aos labirintos do processo de representação política e às consequentes limitações no acesso à arena onde, de facto, se podiam esgrimir os diversos interesses em presença.
O que em nada diminui a relevância do método democrático para o apuramento de qualquer livre vontade, mas não impediu a sua mais ostensiva e massiva privação, em ‘democracia’. Nem o historial da abundante imposição dos poderes fáticos, numa tão formal quanto circunscrita separação de poderes. Alargando o useiro pavor do ‘povo’ pela barra dos tribunais, vindo do tempo em que, por ‘vadiagem’, se lhe pregavam as orelhas ao pelourinho e se condenava à morte em caso de reincidência (DEBITA NOSTRA XCIV).
Destacando, contudo, todo o caminho por que veio passando a obtenção de mais razoáveis contextos de liberdade e suscitando legitimas interrogações sobre o caráter instrumental daquele ‘empurrar’ do “povo”. Ou seja, sobre se a forma se pode sobrepor ao fundo, o meio aos fins e o método ao objetivo. Sobre a ‘popularidade’ de tais mudanças. Sobre se a “democracia liberal” pôde sê-lo antes de ser “social”, tanto mais quanto deslocou a legitimidade política para o domínio de uma pretensa soberania “popular”.
O que, de qualquer modo, é bem diferente de que se coloque nela a iniciativa da mudança social.

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