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Crónica: Debita Nostra CLVII

Luís Costa - 25/02/2021 - 9:56


"O primeiro grande pressuposto do pós-guerra parece estar errado: o liberalismo e a democracia não andam de mão dada assim tão naturalmente como tem presumido a maioria dos cidadãos - e muitos académicos. À medida que a vontade popular entra cada vez mais em choque com as liberdades individuais, a democracia liberal está a dividir-se nos seus elementos fundamentais.” (Y. Mounk, 2019, Povo vs. Democracia, pp. 99).
A ideologia liberal, sitiada embora no pós-guerra pelo desenvolvimento, nas democracias mais consolidadas, de um multifacetado “modelo social” (DEBITA NOSTRA LXXI a LXXVII), nunca perdeu a sua vocação hegemónica. Disso são testemunho as próprias valorações semânticas que subjazem à relação conceptual entre liberalismo e democracia.
À primeira vista, a expressão “democracia iliberal” denota que o liberalismo, entendido como a componente das liberdades individuais, seria supérfluo em democracia. Não deixa, porém, de estabelecer uma evidente hierarquia, entre ‘democracias de primeira’ e de ‘segunda’, em que o liberal se torna decisivo e a “vontade do povo” é reconduzida ao seu lugar.
Não há ditaduras cujo suporte é essa mesma adesão popular? E, sendo necessário medi-la, será que um plebiscito serve? E que fazer quando as decisões políticas difíceis não encontram eco na “vontade popular”? E se essas decisões decorrerem de ‘axiomas’ financeiros ou do imperativo de que se produza mais barato?
Na dúvida sobre se foi certa “vontade popular” a afastar-se das liberdades, ou se foram certas liberdades a afastarem-se da “vontade popular”, parece que foi esta que “entrou em choque” com aquelas, de(s)compondo a “democracia liberal”. O que torna muito difícil que, no reverso das “democracias iliberais”, alguém possa tropeçar num liberalismo não-democrático. 
Não foi a moderna democracia uma criação do liberalismo? Não são os seus pecadilhos ‘fogosas’ manifestações de um ‘juvenil’ neoliberalismo? Mesmo que este prefira as não-democracias, pelos seus parcos “custos” do trabalho, ou um crescente “dumping” fiscal e o dos direitos sociais e políticos correspondentes?! 
E que seja, assim, herdeiro direto de um ‘reabilitado veteroliberalismo’, das suas aterradoras consequências sociais e da ‘impoluta’ razão que as ‘justificava’: a postulada competição. A mesma que, no insuspeito relato do liberal Louis Réné de Villermé, à “Academia das Ciências Morais e Políticas” francesa, era “um dos grandes inconvenientes da liberdade ilimitada da indústria”. 
O qual “se opõe a que muitos patrões, principalmente aqueles que se iniciam na carreira com poucos capitais e que temem qualquer novo concorrente, queiram dar bons hábitos aos trabalhadores” (“Estado físico e moral dos operários”, 1840).
Só que o ideário liberal tinha-se proposto deslocar a legitimação política do campo do transcendente para o da “vontade popular”, sendo a liberdade (igualdade e fraternidade) a condição para que a mesma se pudesse apurar.
Pelo que deveria permitir-se igual zelo na criação das condições da liberdade, as indispensáveis à formação de qualquer vontade!

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