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Crónica: Debita Nostra CLVIII

Luís Costa - 11/03/2021 - 9:33

"Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.”  (Código Civil, Art.º 1340º, n.º 1)
A expressão semântica do caráter hegemónico da ideologia liberal não se fica pela discreta hierarquia entre democracia e liberalismo que resulta do corrente apuramento de democracias “iliberais”, mas não liberalismos não-democráticos (Debita Nostra, CLVII).
Indo mais longe nessa articulação, permite ainda ao liberalismo uma tácita apropriação, em exclusivo, do método democrático, baseada no facto de que foi ele que o recuperou para a modernidade. 
Assim, já não é só do branqueamento dos atropelos à democracia, pelo “liberalismo económico”, que se trata; mas de um confinamento da própria democracia, na sua atrelagem ao liberalismo, como um todo. Sentido que também perpassa pela comum designação “democracia liberal” que, quanto mais normalizada, menos se restringe ao nome de batismo, ou à demarcação de quaisquer “iliberalismos”.
Ora, ao deslocar a legitimação política do campo do transcendente para o da “vontade popular” e ao destacar a liberdade como o fator indispensável para que ela se manifeste, dificilmente o liberalismo se poderia ter quedado por aí. 
Pela ‘incondicional’ omissão das condições da liberdade. Ou seja, pela positiva afirmação do princípio de se ser igual (perante a lei), num contexto de uma profunda desigualdade (sabendo que, já matematicamente, o positivo dá negativo ou positivo, se incidir sobre o negativo ou positivo, respetivamente). 
Assim, ao proclamar a liberdade ‘descuidando’ a igualdade, não só suscitou a dialética proclamação da igualdade ‘descuidando’ a liberdade, como lhe ofereceu, de bandeja, o substantivo argumento de uma revoltante precariedade e de uma ímpar conflitualidade social.
Mais. Subverteu todo o sistema político seu contemporâneo, centrando-o sobre essa mesma questão e levando as demais correntes políticas a, de boa fé, se modelarem numa rejeição do liberalismo, quando não na árdua pugna pelas condições da liberdade, no seu gritante apelo social. Porque hão de agora, tais paladinos da democracia, não pela conveniência do método, mas pelos seus onerosos objetivos, vir esmolar-lhe o nome?!
E aí estão os avanços tecnológicos, esbatendo as mediações do processo de representação política, outra vez a reclamar mais dispendiosas condições de liberdade, para que se lide com a fundamental “vontade popular”!  É, assim, a parte que lhes cabe, a menos relevante para que a democracia tenha de ser liberal? 
Ou a dita “vontade popular”, já de si pouco concisa, tem apenas um caráter instrumental na legitimação do sistema político? Deste ou ainda de outros mais?
Debrucemo-nos, então, sobre os vários inquilinos da palavra “povo”!

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