Este site utiliza cookies. Ao continuar a navegar no nosso website está a consentir a utilização de cookies. Saiba mais

Digressões Interiores: Adormeço e acordo no teu nome e no teu olha

João Lourenço Roque - 04/01/2024 - 10:26

É raro não pender para a escrita nas minhas deslocações semanais a Coimbra. Parece que ali vêm ter comigo mais alinhados os pensamentos e as palavras que, de modo desordenado e tumultuoso, vão surgindo ao longo das minhas caminhadas pelas veredas longas e sinuosas nos horizontes da aldeia.

Partilhar:

É raro não pender para a escrita nas minhas deslocações semanais a Coimbra. Parece que ali vêm ter comigo mais alinhados os pensamentos e as palavras que, de modo desordenado e tumultuoso, vão surgindo ao longo das minhas caminhadas pelas veredas longas e sinuosas nos horizontes da aldeia. Caminhadas com destino certo ou incerto, à semelhança da minha vida. Às vezes, de tão cansado por dentro e por fora, mais me apetece parar no tempo e ficar para sempre em qualquer sítio mais aprazível, desconhecido e nostálgico. Ainda recentemente, fiquei uma eternidade sentado num rochedo, defronte da “casa” do Vale da Abelheira, à beira daquele ribeiro que as chuvadas puseram a correr. Tão livre e tão só, prendi-me nos murmúrios da água mais apressada. Atirei à corrente a tristeza que carrego, mas a água não quis levá-la nem dizer-me para que mar corria. Mesmo assim, achei-me mais sereno na contemplação daquele paraíso abandonado. Por momentos, imaginei que alguém viria da outra margem encontrar-se comigo, saber de mim e contar-me a sua história nas águas passadas e futuras. Quem sabe, talvez ficar a meu lado e abraçar-me carinhosamente como se eu ainda fosse criança. Sem idade e sem tempo para mais sonhos e fantasias, levantei-me e prossegui a jornada, emaranhado noutros sons, cores e pensamentos. Até quando, ninguém me conta ou adivinha. 
Em chegando a hora, mais ou menos esperada ou de todo impensável e imprevista, um a um vamos partindo sem saber porquê e para onde. Em Março, partiu um bom amigo: o Francisco Roque, marido da prima Natividade. Rapaz do meu tempo, sempre atencioso e prestável quando me encontrava com a minha mãe no hospital de Castelo Branco. Deixou boa descendência e boas heranças. Nas aldeias as árvores “falam-nos” das pessoas que conhece-mos. Enquanto passar na estrada ao lado das oliveiras que nas suas mãos pareciam um jardim, próximo da ponte, hei-de lembrar-me do saudoso Francisco da Nave. Li há tempos – creio que na revista “Sábado” – que são cada vez mais os idosos digitalizados entretidos, horas a fio, em videojogos. Acho bem se isso lhes dá gozo e os revitaliza em termos de “mobilidade lúdica e cerebral”. Todavia, a mim, que por opção e teimosia não engraço com semelhantes apegos e devoções, melhores me parecem outros passatempos e actividades. Melhores porque mais saudáveis, mais livres e naturais. Vai daí, à laia de conselheiro – que nunca fui, nem quis ser – deu-me para apontar algumas sugestões alternativas: ler bons livros e conversar boas conversas, em casa ou nos cafés e esplanadas; escrever cartas, contos e memórias; ouvir ou tocar música; namorar o mais possível nas boas horas e oportunidades, mas sem pressas e expectativas exageradas; ajudar os netos nos trabalhos escolares; ir ao cinema, conhecer museus e outros monumentos; visitar doentes e idosos isolados; passear nos jardins, nas ruas e nas praças da cidade; descobrir aldeias e percorrer os campos áridos ou floridos; colher frutos silvestres; ouvir o canto das aves da manhã; seguir o voo das cegonhas nas tardes de céu azul; espreitar a vida selvagem, apanhar sol e ar puro nas colinas e serranias; merendar bons farnéis junto às fontes dos pastores ou nas margens dos rios e ribeiras; escutar a voz do vento nas copas dos pinheiros, nas searas de trigo e nos ramos das oliveiras; mexer e remexer na terra e tratar do quintal ou da horta. Enfim – e porque não? – guardar um rebanhinho de cabras ou de ovelhas, encostado aos cajados, aos assobios e às cantorias de antigamente. Por certo, com esta vão rir-se ou fazer pouco de mim. Nada que me rale por aí além… Acreditem ou não, é o que mais faço e vejo fazer nos arrabaldes da cidade e nas aldeias que conheço. Se nada disto vos interessar, rasguem as minhas palavras e manias, chamem-me velho atrasado, não larguem os sofás e os computadores e espalhem aos quatro ventos que são jovens e modernos…
Insisto na leitura, espantado – ou talvez não – com a notícia de que em 2021, 60% dos portugueses não leram qualquer livro… É o que dá minimizar dimensões essenciais da cultura e gastar o tempo amarrado a “redes sociais”… Sei bem que tu, Maria Antónia, não entras naquela sombria estatística. Pelo contrário, não conheço leitora ou leitor que contigo se compare. Habituada aos livros desde menina na casa de teus pais, mantiveste e avolumaste na vida adulta a paixão pela leitura. E assim continuas – ao invés de tantos colegas que não saem das “leituras obrigatórias” – nos altos patamares da tua vida académica e universitária. De tal modo que, a par de ilustre e respeitada historiadora, bem podias singrar na docência em diversas áreas da literatura clássica e moderna. Mas tanto quanto me parece “não morres de amores” pela poesia, embora digas de cor vários poemas de que muito gostas. Já eu, raramente saio dos encantamentos poéticos que, com relativa frequência, ilustram as minhas digressões interiores. Hoje, novos poetas e mais versos escolhi, convicto de que gostarás: “Morre a luz que esconde as noites,/ os apelos são muitos, mas o palco se fecha/ e a plateia de mulheres tristes/ se afasta como se nada tivesse acontecido” (Álvaro Alves de Faria, Pandemia – 27 Poemas Brasileiros); “andam as mulheres de Alcafozes/ com os cântaros cheios de água,/ cheios de sílabas./ A mulheres mordem as lágrimas em segredo,/ escutam o amor, bebem o sol,/ a frescura da pele./ E soltam as cegonhas das cúpulas da igreja./ Soltam as varandas para os montes,/ soltam os imensos malmequeres amarelos,/ que me consomem a voz/ as nuvens caem junto às brancas casas,/ às rochas, à sede//… escuta: são os adufes a saltar pelas mãos exangues, / são os pastores debaixo das oliveiras a sossegar/ o rebanho…escuta/ escuta bem: são os nossos antepassados a visitar-nos/ com o incêndio nos olhos e a esteva na voz.” (Luís Aguiar, Filhos Raianos). Livros admiráveis estes e outros, que o editor Jorge Fragoso generosamente me trouxe e ofereceu nos encontros de Coimbra, na esplanada da pastelaria “mildoce”.
Queira ou não queira, na poesia me recolho e demoro. Poéticas - e estranhas – também me parecem algumas das mensagens que de Castelo Branco vêm. A exemplo desta, ainda desde o mês de Março, duradouro, trágico e agreste: “Abre-se a caixa de Pandora e emergem os monstros e eu não quero ver…deem-me o sono”. Adormeço e acordo nas palavras que me dizes ou afastas e na bela orquídea que a Idalina me deu para colocar na jarra singela, junto aos retratos dos meus filhos e dos meus pais. Adormeço e acordo nos gritos que lanço e reprimo sempre que caminho nas veredas do passado e avisto o rio Ocreza. Rio que era tão nosso, rio que em nós corria, e que agora não passa de mais um abismo, abismo fundo nos meus olhos tristes e no meu coração que chora… Assim é a vida, tão injusta e desigual! A vida, ou a sorte…Que há-de a gente fazer! “Morre a luz que esconde as noites…”. Adormeço e acordo no teu nome e no teu olhar…

João Lourenço Roque

COMENTÁRIOS

JMarques
Este ano
Idosos digitalizados/Conselheiro:
Não posso dizer que tomei o concelho, porque há muito tempo que assim penso, embora nem sempre assim faça.