Este site utiliza cookies. Ao continuar a navegar no nosso website está a consentir a utilização de cookies. Saiba mais

Digressões Interiores: Aquele abraço que veio da Lomba Chã

João Lourenço Roque - 04/02/2022 - 11:18

Após meses de interrupção, retomei a escrita no dia 5 de Janeiro, véspera de “Reis”, à beira do aniversário dos “gémeos” que nunca esquecem o “tio de Coimbra”.

Partilhar:

Após meses de interrupção, retomei a escrita no dia 5 de Janeiro, véspera de “Reis”, à beira do aniversário dos “gémeos” que nunca esquecem o “tio de Coimbra”. Para mim a faina e a paixão de escrever constituem uma necessidade vital e representam as minhas lavouras e sementeiras psicológicas e culturais, no prolongamento e na mudança das labutas dos meus antepassados camponeses. A caneta e o computador são o meu arado e a minha esperança. Nestas e em outras caminhadas, ocasiões há em que de tão sozinho mais acompanhado me sinto. De modo especial quando alguém se lembra de enviar-me mensagens como esta: “Pássaros que cantais dizei-me o que significa o som do vosso canto. Oiço e não entendo. Escuto. De novo sem entender se é alegria, encanto, melancolia, dor, ou tristeza que dizeis em tais cantares, é, com certeza, limitação minha porque esta coisa da minha finitude tolhe-me o entendimento…. Também não sei se o importante é entender…Sentir, isso sim. Sentir que o dia tem estes momentos de ver os pássaros e ouvir os seus cantos e poder partilhar com os demais estes sons, como um empréstimo do instante, é um privilégio só possível em certos lugares. Este é um desses sítios. E gosto deste silêncio habitado. Neste e em outros lugares, há tempo e ambiente para os outros. É disso que a vida se faz…Um abraço deste lugar para esse”. Mensagem funda, sentida e amiga que em Coimbra me chegou da Lomba Chã, num abraço da Miquelina e do Alexandre… Por longos e indizíveis momentos fiquei ali, tolhido e consolado naquela surpresa e naquele abraço, sem saber como prosseguir nos regos e nos horizontes desta crónica.

Em Novembro e em Dezembro passados, andei entretido na apanha da azeitona e na preparação do livro, que reúne as crónicas espalhadas entre 2017 e 2021, cuja publicação está para breve e que já motivou um excelente e sugestivo artigo da ilustre jornalista Lídia Barata. Livro que soa a despedida e que, em grande parte, melhor seria que ficasse em branco ou riscado. Agora mais compreensíveis e ajustadas me parecem as palavras que há muitos anos – ainda no tempo dos livros de poesia – me disse uma Colega da Universidade: “gosto do seu jeito de escrever mas não gosto das razões porque escreve…” Na última campanha da azeitona, atravessei momentos difíceis. Custou-me imenso voltar às oliveiras, carregadas de frutos e de histórias, contadas ou por contar. Por vezes sentia forças ocultas que me empurravam para longe das escadas e dos panais…. Ao ripar, de mãos hesitantes, as primeiras azeitonas, parecia-me rever o filme inteiro da minha vida toda, em cenas e episódios, contínuos ou salteados, que me traziam de volta os rostos e as vozes de todos os meus familiares mais próximos. Andámos nisto – por “troca”, sempre em “rancho”; alguns silenciosos, outros com candongas atrás de candongas – até à beira do Natal. Ao separarmo-nos, agradeci a todos a boa ajuda e companhia e pedi-lhes que não me dissessem nada ou, então, que inventassem, se pudessem, um “conto de Natal” que “alterasse” a minha história de vida. Logo que pude, já com o azeite em casa, fugi para Coimbra, embora acorrentado a lembranças e pensamentos que não me largam. Não me apercebi da “passagem de ano”. Disseram-me que entrámos em 2022, mas eu fiquei em 2021. Não vejo maneira, nem caminhos, de “virar a página” … Fiquei em 2021 – insisto – e nalguns versos do poema “Enigmas” de António Salvado (em O Suave Jugo): “O pousio de Outono me apanhava/ desprevenido com os dias breves/ e a dominância farta de amarelos/ a cobrirem os campos e a minh’ alma…” / “A solidão dentro de mim porquê…/ Um tal mistério feito de silêncios…/ Olhos abertos mas sem nada verem, / passos cansados mas sem movimento…”.

Foi nos Calvos que regressei à escrita, sem cuidar de mais livros. Ao voltar de Coimbra, tudo na mesma ou mais triste. Mal cheguei, logo me disseram outra morte: a do primo João Moleiro (João Gonçalves) que faleceu, a 30 de Dezembro, no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Sarzedas onde passou os últimos anos, sempre bem protegido e amparado, segundo confessava e davam conta os filhos que, carinhosos e dedicados, tantas vezes iam visitá-lo. Partiu no termo de uma longa vida, vida rara, vida centenária. Vida, quantas vezes, pobre e dura mas também feliz e abençoada. Deixou-nos boas histórias, muitas saudades e gratas recordações. Ao evocar a sua memória, “revejo-o” com a esposa, a prima Narcisa Rosa – que mais cedo partiu -, na casa do balcão que tanto me diz e entristece… Entre as Teixugueiras e a Lomba Chã instalou-se, por razões que desconheço, uma numerosa e barulhenta “colónia de corvos” que talvez merecesse a atenção dos ambientalistas e dos biólogos. Já inquiri os “cientistas” mais famosos daquelas localidades sobre tão estranha e interessante novidade, mas pouco ou nada me convenceram as suas teorias e explicações. À margem deste caso insólito, confesso que já nem sei em que céus voam e cantam os pássaros de antigamente, os pássaros da minha infância. Agora que os paraísos terrestres diminuem a olhos vistos, ouvi dizer que a Ana Paula descobriu um, lá prós lados do Monte Muro, escondido entre o rio Ocreza e a ribeira da Líria. Se paraíso for, ela que o desfrute e resguarde de outras tentações e miragens.

Há noites que parecem dia e dias que parecem noite. Assim aconteceu naquele 5 de Janeiro em que principiei esta crónica. Sol nem vê-lo, apenas chuva e frio agrestes sobretudo na parte da tarde. Conversas, poucas ou nenhumas porque os vizinhos teimam em esconder-se, presos aos debates eleitorais ou, mais ainda, assustados com a “ómicron” e com o alastrar da pandemia por diversas povoações. À porta de casa só dei conta de terem passado um rebanho de cabras e um burro atrelado à carroça. Nas raras vezes em que vim à rua, só avistei um vulto negro com máscara branca… Em dias assim, tão escuros e parados, mais se adensam as hesitações e os enigmas e mais me aproximo da noção sentimental e filosófica do “nada”. Em dias assim, mais triste é a tristeza. Quem me dera amanhã em Coimbra, naquela pastelaria que agora mais frequento, desde que abandonei, quase de vez, as atraentes esplanadas de Celas. Ali – na “mil doce”, assim se chama – me entrego a leituras e à escrita. Dali quase entro na rua Guerra Junqueiro, que fica a dois passos, e facilmente avisto toda a “baixa” da cidade e a acrópole universitária, onde ficaram tantas páginas, perdidas ou esbanjadas, e alguns dos melhores pedaços da minha vida… Mais vale esquecer para sempre a Universidade de Coimbra… Fico abismado – para não dizer outra coisa… - quando me contam que, hoje em dia, nela proliferam “iluminados” que advogam que as aulas sejam leccionadas em inglês! Mais vale limitar-me às memórias e recordações da Guerra Junqueiro e cingir-me ao bom ambiente, aos encantos e às gentilezas que encontro na “mil doce”. Rodeado de jovens que namoram ou estudam, menos velho me sinto e mais me agradam as palavras das pessoas que ali trabalham e fazem pela vida. Recentemente, alguém me disse: “Coisa boa ser professor…”; “Bonita, muito bonita a sua letra…”. Ou, melhor ainda: “Veja se não perde esse sorriso, sorriso que vale milhões…”. Exageros que não “viram páginas” mas que soam e fazem bem. Mais ainda, quando habitamos no silêncio e no luto e tudo é ou parece inverno. Mesmo ao findar da crónica, outra mensagem tocante e incerta: “Noite descansada. E haja sonhos que te aconcheguem enquanto a geada vai branqueando tudo.”

Calvos | Coimbra, Janeiro de 2022 João Lourenço Roque

COMENTÁRIOS

JMarques
à muito tempo atrás
BELO!
Onde humildemente me revejo.