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Digressões Interiores: Era “Domingo de Ramos...”

João Lourenço Roque - 23/04/2024 - 17:21

Não vou falar de política, mas desejo muita sorte e bom trabalho ao novo governo, em tempos tão escuros e complicados.

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Não vou falar de política, mas desejo muita sorte e bom trabalho ao novo governo, em tempos tão escuros e complicados. E evoco Abril, aquele Abril que mudou Portugal. No dia 31 de Março, Domingo de Páscoa, adiantei o relógio, mas a minha vida continuou na "hora velha". O que mais me assusta é ficar de cabeça avariada. Sinais não faltam. Já me aconteceu esquecer-me de que, às terças-feiras, é feriado na Lomba Chã. Acho que não é grave e não me causa grande transtorno, porque há outros cafés em terras próximas. Pior será, se me esquecer do teu nome, dos teus olhos e do teu rosto. Ou de mim próprio e dos caminhos por onde gostava de caminhar. Por enquanto, ainda aguento as crescentes fragilidades físicas, psicológicas e emocionais. Vivo, ou tento viver, um dia de cada vez. Parece pouco, mas não é. Quase diria que é "pão com mel...". Às vezes, nada faço. Fico na cozinha e passo horas à volta do lume, olhando o passado, à espera que alguém me chame e apareça com algum mimo. Quase sempre em vão. Na Páscoa, nem ao menos uma tigelada me trouxeram. Se me farto de esperar, vou para a sala da casa do sobrado. Ligo a televisão, só por ligar porque raramente encontro algo que valha a pena ver. Estendo-me no sofá e descanso, porque, como dizia o outro, para descansar não é preciso estar cansado. Mas, por enquanto, nada disto me prende por muito tempo. A qualquer hora fujo de casa como ave que não suporta gaiolas. E caminho na liberdade de ser livre e corajoso. Parece loucura - e talvez seja - embrenhar-me sozinho por montes e vales em longas jornadas, tanto em dias luminosos, que me consolam no corpo e na alma, como em dias agrestes e tempestuosos, que me empurram para o chão. Até mais ver e enquanto puder só assim resisto e me sinto bem. Assim enfrento os meus medos e desvarios. Só não entende, quem não passa por elas ou não quer entender. Sempre que parto, levo comigo as preocupações e os bons conselhos de quem comigo se preocupa: "Tem cuidado, não te afoites por sítios desconhecidos, não venhas tarde, não deixes fechar a noite, não te esqueças do boné, da garrafa de água e do telemóvel...".

Por mais repetidas que sejam as minhas caminhadas, sempre encontro diferenças e novidades. Era "Domingo de Ramos", celebração religiosa, espiritual e comunitária que me marcou desde a infância - quando tudo parecia céu limpo e azul - e que tantas vezes me levava às Sarzedas. De manhã, ao levantar-me, senti forte vontade de fazer um "raminho" e de ir à vila. Depois, sobrevieram as hesitações e os desânimos habituais e tudo esmoreceu. Talvez por adivinhar a tua ausência e por me doerem, cada vez mais, as idas às Sarzedas. Então, ao início da tarde, os meus pensamentos e os meus passos me encaminharam novamente para os esplendores da natureza renovada e florida. A certa altura, sentei-me na berma do caminho para beber água e fumar um cigarro. Estava nisto, rodeado de papoilas, quando, bem de frente, avistei uma lebre jovem e elegante, parada no meio do caminho largo, a olhar para mim. Nunca tive uma lebre tão próxima. Creio que pressentiu que não lhe faria qualquer mal, mas, pelo sim pelo não, após breves segundos entrou num rodelo de estevas, onde teria a "cama". Não me ouviu, mas desejei-lhe muita sorte de que bem precisa para livrar-se de tantos perigos e ameaças. Se ainda estivéssemos "no tempo em que os animais falavam", por certo arranjaríamos uma boa conversa e, caso aparecesse alguma tartaruga, quem sabe se não combinariam uma nova corrida...Dizia-se na aldeia - e ainda se diz - que a fome e o frio é que metem a lebre a caminho. Sentença ou lição que, como tantas outras no mundo rural, tomava os animais como exemplo para explicar e compreender o quotidiano, natural e sobrenatural, os modos e os comportamentos dos seres humanos. No caso da "minha lebre", que bem gostaria de tornar a ver, fome não me pareceu e frio não era. Fazia calor, naquela tarde serena e reconfortante. Clima doce que logo mudou no dia seguinte, passando a invernia prolongada, depois substituída por uma “onda de calor” em meados de Abril. Com estas e outras oscilações, repentinas e duradouras, mais perturbado e azedo fico, murmurando para mim próprio: Coitados dos velhos, nem o tempo os ajuda! Era "Domingo de Ramos", recordo. Ao fim da tarde, de volta à aldeia ainda ouvi o cuco, à procura de ninhos alheios ou de lagartas em procissão. Regressei a casa com um balde de belos tortulhos e um "conto" novo para contar.

Deixo os contos que gostava de ouvir e de inventar. Fecho-me nos círculos da realidade que nos circunda e envolve. Vezes sem conta, notícias tristes chegam até nós. Alguém doente, alguém que desapareceu. Encerro a crónica com uma nota de homenagem e de sentido pesar pela morte do Paulo Diogo de São Domingos, em 19 de Março. Morreu novo, como demasiadas vezes acontece. Parece sina das pessoas boas e diferentes. Deixou marcas nas vidas da sua vida e nas casas que ergueu ou reconstruiu. Conheci-o de perto, em dias ainda claros, quando deitou mãos e ideias à remodelação interior da velha casa que herdei dos meus pais. Em equipa com outro “artista”, orientou tudo com grande mestria e especial engenho. Engenho de mestre pedreiro, engenho de arquitecto. Ainda não esqueci como sabia escolher e assentar as pedras de xisto escuro, muitas delas vindas do rio na Foz da Líria. Talvez por isso, quase parece que o rio, mesmo parado, também ali corre. Ainda não esqueci as boas conversas, em modos de brincadeira ou em torno da história de Portugal. O Paulo não era historiador - ou talvez fosse -, mas gostava e sabia muito de história. Ficámos amigos, desde então. Ficaram recordações, somadas a tantas outras recordações que perduram, como se fossem eternas, nas pedras mudas e alinhadas, no chão ou na cantareira, em estranhas e rústicas geometrias. Pedras que falam, pedras que choram, nos silêncios da velha casa... Corre o tempo no correr dos dias breves. De ano para ano, soam mais tristes os sinos de São Domingos. Anoitece a romaria…

COMENTÁRIOS

JMarques
Na semana passada
A minha moral da SUA história:
Nesse tempo a fome e o frio metiam as LEBRES a caminho, agora já nem a fome nem o frio, esperam que o "caminho" venha ter com elas.