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Digressões Interiores: Falta tanta coisa... Falta bondade

João Lourenço Roque - 06/12/2023 - 18:00

Na aldeia dias há em que tudo é marasmo sem fim. Nada de novo, nada que nos desperte neste mundo fechado. Outras vezes, enchem-se as ruas de surpresas e reboliços.

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Na aldeia dias há em que tudo é marasmo sem fim. Nada de novo, nada que nos desperte neste mundo fechado. Outras vezes, enchem-se as ruas de surpresas e reboliços. Assim aconteceu no dia 14 de Setembro de 2023. Carros e mais carros, motorizadas com reboques, e o trânsito cortado no largo do Outão, de tal modo que nem a carrinha do peixeiro conseguia passar. Sem sabermos a que se devia tão inusitado movimento, deitámo-nos a adivinhar mas ninguém dizia coisa com coisa. Abeirei-me do cenário e da multidão e descobri que andavam em filmagens.Gente e mais gente: técnicos de imagem e de som, guionistas, realizadores, figurantes, actores e actrizes principais e secundários. Descarado e atrevido como sou, meti-me no filme mas logo me afastaram, gritando "corta"...Não entendo porque prescindiram da minha figura e dos meus talentos, menos entendo porque não filmaram o peixeiro que traz notícias de outras terras e nos abastece de sabores do mar. Dá gosto ouvi-lo e ver a carrinha rodeada de bons clientes, de modo especial a Otília. Sem esquecer os gatos que refilam para ser atendidos, mas que pouco ou nenhum lucro lhe dão porque raramente "trazem carteira" ou "cartão de multibanco"...Ultimadas as filmagens, desandaram sem despedidas ou explicações. Ao certo ao certo, ainda hoje não sei o que vieram filmar, tantas foram as versões que correram. Repostos o marasmo e a pasmaceira habituais, fechei-me em casa, abri a escrita e retomei os enredos da minha imaginação e da minha vida. Logo que Outubro e Novembro desataram chuvadas intensas e persistentes, corri de regato em regato, de ribeiro em ribeiro, encantado com o barulho da água a correr. Nos caminhos e nas surpresas da natureza, menos só me vejo e mais livre e autêntico me sinto. Mais e melhor reconheço que o mundo gira e não gira à nossa volta.

Às vezes não entendo o que me dizem - ou querem dizer - quando me aconselham a deixar o passado e a seguir em frente. Então mais me interrogo que mal fará puxar pelos sentimentos e pelas palavras para contar outras vidas. Vidas anteriores, próximas ou distantes, completas ou incompletas. Digam o que disserem, não saio de mim e das minhas ideias. Enquanto puder, não deixarei de lutar contra o esquecimento. Sem histórias e memórias das vidas passadas, nunca compreenderemos as vidas seguintes nem avistaremos sonhos e horizontes mais luminosos e desejados. Sobretudo nos tempos que correm, turvados por mentiras atrás de mentiras. Mentiras que, de tanto mentir, se tornam verdade...Na aldeia me vejo, mas olho o mundo assombrado pelo medo e pela morte de tantos inocentes, atolado em conflitos, ódios e hipocrisias. Tanta coisa nos faz falta. A esperança não se perde, mas tantas vezes parece cansada ou perdida. A luz nunca se apaga, mas em tantos pontos mais parece noite escura. Falta tanta coisa...falta humanismo. Falta bondade. Falta Natal.

Só eu leio e entendo o que me dizeis nas mensagens do dia 8 de todos os meses. Tocado pela beleza e pelo sentido das palavras, revelo outra passagem: "... Manhã. Olho em redor...O que vejo é único. Por entre a ramagem há uma nesga de luz que me entra pelos olhos adentro e me fala numa linguagem que me está vedada. Não entendo nada. Paro. Entretanto o sol vai aumentando de intensidade. As agulhas dos pinheiros, algumas, parecem-me amarelecidas. Viro-me e olho para o outro lado do caminho. Vejo alguém a caminhar noutro sentido. Viu-me e acenou-me. Esse aceno tomo-o como meu e envio-o, com amor fraterno, em nome de ambos, aí para onde quer que esteja". Na aldeia me vejo, em tantos sítios e emoções, nas curvas mais apertadas da minha vida. Todas as semanas corro para a cidade. Sei de cor as ruas e os cafés dos nossos encontros e abraços. Nos meus passos sigo os passos de quem passa, imaginando que podias ser tu. Sigo as palavras e os acenos de quem me acompanha, nos meus silêncios, nos meus cansaços. Mesmo longe, sempre longe. A 21 de novembro, outro fim, outro luto na história familiar. Morreu a prima Maria de Lurdes - Maria Lourenço Roque - , que muito estimava e admirava. Sempre generosa, autêntica, apegada à vida e à família. Bem me lembro dos belos pães de trigo que nos oferecia. Adormeceu em paz, longe dos Calvos, longe do berço e dos horizontes de que tanto gostava. Brilha e corre nos céus a luz que nos seus olhos corria. Deixo as palavras, abrigo-me na saudade e na tristeza aumentada. Subo a rua principal e afasto-me nos passos de quem não passa.

 

COMENTÁRIOS

JMarques
No ano passado
As memórias e as raízes não são coisas para esquecer, embora estejamos a viver tempo de amnésia.