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Digressões Interiores: Lenços Brancos, poema de António Salvado

João Lourenço Roque - 04/05/2023 - 9:35

Por todo o lado encontramos pessoas simpáticas, atenciosas, prestáveis, que nunca viram costas a quem lhes pede alguma ajuda.

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Por todo o lado encontramos pessoas simpáticas, atenciosas, prestáveis, que nunca viram costas a quem lhes pede alguma ajuda. Gente boa, de alma doce, iluminada. Mas também cresce a olhos vistos, acho eu, a falta de civismo e de educação. Basta atentar nos “modos” e nas “maneiras” como alguns “cidadãos” se comportam nos encontros e nos palcos do dia-a-dia. Irritam-me, encolho os ombros ou refilo, mas não adianta falar. Parece que vale tudo. Talvez lhes fizesse bem passar umas temporadas em aldeias quase desertas…Deixo o reparo, mudo de página e sigo noutras direcções e atitudes.

Não têm conta os montes de coisas e objectos, reais e simbólicos, que usamos ao longo da vida, como se fossem sinais e projecções de nós mesmos. Muitos acabam esquecidos, inutilizados ou atirados para o lixo nas curvas e nos lixos da vida…Outros acompanham-nos até ao fim. Entre estes, incluo os “retratos”, os livros e os relógios. Os retratos, porque contam e escondem histórias da nossa história. Os livros, porque abriram e mudaram a minha vida desde a instrução primária. Os relógios, porque mostravam e mediam o meu tempo e as minhas passadas em todas as horas e desoras por onde andava. Singular a minha vida, cheia de grandes e pequenas singularidades. Haverá quem não acredite, mas só aos 77 anos me deu para comprar um relógio, numa ourivesaria de Castelo Branco. Até então regulei-me sempre por aquele que os meus pais me ofereceram, por ocasião da 4ªclasse ou da entrada no liceu, adquirido, por bom dinheiro, ao Senhor Manuel ourives de Cantanhede. Sempre, excepto nas duas últimas décadas em que também usei, e ainda uso, aquele lindo relógio que me ficou do Zé Miguel. Quase choro, choro mesmo, só de escrever o que escrevi. Falei de relógios, mas nos campos de outrora mais certos e naturais eram os dias e as noites, quando nos regulávamos pelo sol, pelas luas e pelo cantar das aves da madrugada. Ou, nos calores de verão, pela chegada das merendas e das sestas. Não têm contas as coisas de que ainda me lembro, no meio de tantas outras caídas no esquecimento. Quando era novo e me demorava na aldeia não entendia muitas das expressões dos antigos. Agora, já não me interrogo sobre o que quereriam dizer quando diziam “adeus mundo, cada vez pior!” Nesses tempos, toda a gente me tratava por João. E eu gostava porque gosto do meu nome e dos seus significados e mistérios. Depois, quase por todo o lado, mudaram para “doutor” ou “professor”. De “Professor” também gosto, por simbolizar grande parte da minha vida e trazer-me de volta alguns pedaços do passado que ainda guardo e guardarei. Creio que alguns leitores, que mais me seguem e acompanham, já deram conta de que a Miquelina e o Alexandre assinalam por mensagens o dia 8 de todos os meses, depois de Junho de 2021. Mesmo de longe, vêm ter comigo num ritual fraterno. Ritual da memória, ritual do não esquecimento e da presença espiritual. Nem sei como agradecer-lhes tantos ecos e gestos de amizade e compaixão, em palavras como estas (referentes a 8 de Fevereiro de 2023) que me atrevo a revelar, convicto de que não me levam a mal: “Gostava de poder ser sinal, sem ser notada. Poder ser luz, sem ser vista. Poder ser companheira, sem ser empecilho. Poder passar despercebida, estando atenta. Se fosse capaz de cumprir cada uma destas premissas, tocando sem tocar, alumiando, sem alumiar, acompanhando sem acompanhar, creio que me cumpriria. Paro. Penso que só no mundo da utopia, tais desígnios são possíveis. É no meio dos outros e com os outros que vivo e me movo. Ainda assim, volto ao princípio e lembro-me de uma palavra fundamental para mim: comunidade. É aí, que eu gostava de ver, de acompanhar, e de ser capaz de ser luz porque creio ser esse o papel que nos cabe a cada um que nisso acredita. Porque acredito que só em grupo nos cumprimos, aqui fica o nosso pequenino contributo, com o abraço fraterno neste dia.” Comunitária, assim é ou devia ser a nossa vida! No sentido e no espírito de comunidade assentou, ao longo dos séculos, a matriz existencial nas vilas e aldeias do nosso território beirão. Prestes a apagar-se nas dimensões e nas malhas do isolamento e da próxima solidão. Agora, num mundo falado em inglês, mais vontade sinto de regressar à nossa linguagem e à nossa música: “Estas casas são caiadas/ Quem seria a caiadeira/ Foi o noivo mais a noiva/ …Quem seria a caiadeira…”. Já não me lembro da última Páscoa em que caiaste a tua casa, mas do teu nome nunca eu me esqueci. Se te lembrares do meu, trata-me docemente por João… Em Março, perdemos António Salvado. Continua connosco, na beleza, na esperança, na luz da sua poesia sublime e imortal. Em gesto de singela e sentida homenagem, escolho e leio contigo este poema: “O ruído do porto abraça o meu anseio/ de chegar a confins novos, sonhados,/ pois o cansaço me abrasando inteiro/ a cada instante apaga este lugar/ A solidão contorna o mais vazio/ de todos as presentes e vãs coisas./ E o barco se aproxima, o cais ali/ para acolher o seu itinerário./ Outras terras me aguardam tão aráveis/ que nelas plantarei pomares de certeza.// Deixou de ser difuso o horizonte/ e lentamente o barco se afeiçoa/ ao aceno de lenços brancos, brancos.

 

João Lourenço Roque

COMENTÁRIOS

JMarques
No ano passado
Instrução não é educação.