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Digressões Interiores: Não há volta a dar

João Lourenço Roque - 11/05/2023 - 10:03

Mesmo nos meses da cegueira dos tortulhos – que este ano principiou a 25 de Janeiro, com os primeiros achados – não largo a escrita.

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Mesmo nos meses da cegueira dos tortulhos – que este ano principiou a 25 de Janeiro, com os primeiros achados – não largo a escrita. Tantas vezes já te disse que preciso de escrever como de pão para a boca, embora não saiba que razões ou acasos me empurram para este fado. Talvez pelas vidas que tenho ou tive que viver. Talvez por serem cada vez menos as pessoas com quem dava gosto perder e achar tempo, em conversas e desconversas. Assim, de caneta na mão, à moda antiga, à moda da escola, para melhor chamar e sentir a escrita, passeio nas folhas de papel em branco e transformo o vazio em palavras, sem cuidar de quantos mais leitores terei, embora sempre desejoso de que me leiam e comentem. Assim levanto e apago os dias, assim tento ser e descobrir quem sou, sozinho ou acompanhado. Canto quando canto e choro quando choro, indiferente ou atento a mais vozes e clamores. De olhos nos olhos ou às “escondidas”, vários leitores me transmitem como sentem e avaliam aquilo que escrevo. Hoje, com grande atraso, aqui deixo o meu Bem-Haja e uma palavra de muita estima ao leitor J. Marques que desde há muito, com especial regularidade, comenta as minhas crónicas na internet, de modo breve mas sempre certeiro e inteligente. A escrita reforça ou derruba fronteiras. A guerra mancha e avilta a humanidade. Até quando a barbárie representada por Putin e por quem o apoia? A solidariedade e a compaixão aproximam-nos e humanizam-nos; assim nossas também são as tragédias que atingem outras pessoas, outros povos e países. Penso nos sismos da Turquia e da Síria. A beleza - física, psicológica, espiritual – agita, exalta e ameniza a vida. Por vezes, desperta e prolonga paixões e mitos, reais ou imaginários. Insisto em confessá-lo: a minha juventude liceal e universitária ficou marcada pelo fascínio do cinema italiano e pela beleza fascinante e ímpar de algumas actrizes. Recordo agora a belíssima Gina Lollobrigida, desaparecida em Janeiro passado. As estrelas também se apagam, também morrem, mas são ou deviam ser “imortais”… Hoje em dia, bem diferentes e soturnos se apresentam os cenários e os “filmes” em que entro ou me vejo metido. Não há crianças ao colo das mães, nas ruas ou a caminho da escola. Não há livros de casamentos e de baptizados, apenas óbitos nos registos paroquiais e missas pelas almas desaparecidas… Por mais que tente disfarçar e fugir, tudo – ou quase tudo – me empurra para plateias e cenas de idosos em que todos os protagonistas, principais ou secundários, decoram e repetem os mesmos papéis. Gritam, rezam e cantam mas ninguém os ouve. Improvisam ou relembram ditados antigos. Recordam romarias, namoros consentidos ou contrariados. Calam-se. Falam dos pais e dos avós, dos tios e padrinhos, dos primos e primas. Mastigam o pão e as palavras. Esquecem-se de que estão esquecidos. E choram, parecendo sorrir. E sorriem, parecendo chorar. Fogem da rua e dos espelhos. Espreitam quem passa e acenam atrás das janelas. Fecham a vida, nas mãos fechadas, mas alegram-se se dão conta de que estão bem vivos, rodeados de filhos e netos. Partem de repente, sem saber para onde partiram … Cai o pano, apaga-se o ecrã. Não há volta a dar. De mês para mês, somam-se as partidas e os lutos. Escurecem os dias e as aldeias. Escurece o coração dos que ainda sobrevivem. A 6 de Fevereiro, em Castelo Branco no Lar da Misericórdia, adormeceu a Ti Maria Augusta, no termo de uma vida de 92 anos. Toda a gente gostava da Ti Maria Augusta, pessoa muito simples, prestimosa e trabalhadora. Boa filha, boa irmã, boa esposa, boa mãe, sempre a chamar pelo Rafael e pela Maria de Fátima. Boa vizinha, que não arranjava arrelias nem se metia na vida dos outros. Viveu, certamente, muitas alegrias, mas também grandes tristezas e amarguras, a maior e mais profunda pela morte do filho, o saudoso Rafael. Não sei – nunca saberemos – como aguentar tamanha dor. Talvez na fé. Talvez nas lágrimas. Às vezes, na música. Há tempos descobri, no Posto de Turismo de Castelo Branco, um CD do rancho vicentino (São Vicente da Beira). Tocado pelas harmonias das concertinas e das vozes femininas, dou por mim a entrar no terreiro e a cantar baixinho: “Nossa Senhora da Orada/ Para lá vou eu agora/ Meu coração cada dia/ Minha alma a toda a hora…”.
Dias há em que não consigo libertar-me dos meus cansaços. Deixo os meus olhos correr nas ondas da água que corre. Hei-de voltar às tuas mensagens e à cidade. Talvez te encontre nas “tílias” e nas “tentações”. Nos correios e na farmácia. Ou na Igreja de São Miguel. Até lá, sigo no rancho vicentino: “Oh que lindos arredores/ Tem a vila do Fundão/ Santo António, São Francisco/ Senhora da Conceição…”.
Coimbra, Março de 2023
João Lourenço Roque

 

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