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Digressões Interiores: Não sei o que me prende às Sarzedas…

João Lourenço Roque - 21/07/2022 - 12:02

Louvo as iniciativas culturais e sociais da Junta de Freguesia de Sarzedas que, em harmoniosa e criativa ligação com a Câmara Municipal de Castelo Branco, tudo faz para nos unir e valorizar a nível individual e comunitário.

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Louvo as iniciativas culturais e sociais da Junta de Freguesia de Sarzedas que, em harmoniosa e criativa ligação com a Câmara Municipal de Castelo Branco, tudo faz para nos unir e valorizar a nível individual e comunitário. No mês de Junho merecem especial destaque o “Jazz Xisto”, no dia 10, e os “Sabores da Vila Condal”, nos dias 18 e 19. Eventos que, segundo ouvi dizer, atraíram e encantaram multidões de sarzedenses e forasteiros que, assim, mais desejosos ficaram de novos programas e folias. Entendo – e não entendo – porque fico de fora, atormentado pelas ondas de choque na minha vida e no mundo e pelas ondas de calor nas ruas da aldeia. Gostava imenso do Verão albicastrense – tão ligado às “férias grandes” -, mas não gosto de verões assim: repentinos, excessivos, destrutivos, irregulares. Ora escaldantes, ora invernosos. Verões sem datas aproximadas e sem limites… verões que começam em Maio! Verões despovoados de conversas e alaridos antigos, ou de morcegos em voos nocturnos e rasteiros, mas infestados com enxames de moscas e melgas que teimam em “comer-nos vivos…”Flagelo habitual nas aldeias, menos aflitivo mas também presente na cidade. Ainda recentemente, num café de Castelo Branco, aquelas malvadas não me largaram um segundo enquanto tomava uma ligeira e apressada refeição. Na cidade de tantos bulícios ou na aldeia cada vez mais deprimida, assim corre outro verão. Os idosos como eu fogem do medo, cheios de medo, e “matam o tempo” de qualquer maneira, mesmo sabendo que é “o tempo que nos mata”…Neste ambiente desolador, neste clima tão agressivo e destemperado, aquilo que no dia a dia mais me preocupa é o destino da minha horta que tão promissora parece. Regar muito não é bom; regar pouco, pior será. Se peço conselho aos vizinhos, mais confuso e desalentado fico. Seja o que Deus quiser, mas melancias como as do ano passado – que ganharam fama em toda a região e até mesmo em Coimbra e em Almada - não adianta imaginar. Em Julho e Agosto, logo se verá. Se os javalis e as trovoadas deixarem…

Conforme eu previra, não faltaram mensagens no dia 8 de Junho. Nem “O Cavaleiro e o Anjo” de José Afonso. Nas inclemências do tempo e da vida, mais ressaltam alguns “oásis” de encantamento e de comunhão com a natureza e a vida selvagem. Há dias, bem cedo, pela frescura ligeira da manhã, deparei-me outra vez com uma linda e mansa perdiz no mesmo recanto da rua principal. Só se afastou de mim para guiar e proteger os irrequietos filhotes, num terreno murado mas cheio de perigos e ameaças, sobretudo por causa dos gatos manhosos. Pareceu-me a mesma do ano passado, “a linda e triste perdiz” cuja história contei numa das minhas crónicas. Se era, desejo-lhe melhor sorte com a ninhada. Se pudesse e ela me ouvisse, chamá-la-ia até mim e tentaria ensinar-lhe melhores sítios e caminhos mais seguros. Não sei se tornaremos a ver-nos, mas, aconteça o que acontecer, benditos sejam estes momentos, que de tão simples e especiais, bem merecem entrar na breve “eternidade” dos nossos dias e dos nossos sonhos. Motivo de encantamento também é o ninho de rabitas ferreiras, mesmo no meio de nós numa pequena garagem, ou o cantar dos rouxinóis, ali tão perto em redor da “fonte velha”. Não duvido que alguns dos meus leitores hão-de rir-se dos devaneios e ninharias a que me prendo e entrego. Mas sei que outros há que me distinguem justamente pela minha inclinação pela limpidez e simplicidade. Falei dos meus leitores. Tempos houve em que muitos “corriam” para as últimas páginas do “Reconquista”, cientes de que, mais cedo ou mais tarde, lá encontrariam as minhas crónicas, agora quase sempre atiradas para a “edição ou online”. Leitor atento, na internet, permanece o primo Manuel, “brasileiro” dos Vilares de Cima, que, há dias, casualmente reencontrei nas Sarzedas em mais uma visita à sua e à nossa terra. Gostei muito de o ver e de o ouvir: “Olha o primo João…, sabe, já fui hoje aos Calvos mas não dei com o seu irmão e a sua cunhada que sempre reclamam minha presença e me presenteiam com comida deliciosa…; sabe, lá no Brasiu continuo lendo gostosamente suas crónicas, algumas me parecem muito choradas, mas nós somos assim…” Breve mas tocante aquele encontro com o “primo brasileiro”. Não sei o que me prende às Sarzedas, aonde sempre vou mesmo não indo…Talvez as pessoas que ainda me olham, me falam e querem bem. Talvez a gulodice das canastras de cerejas ou de “bolos tortos”, aos domingos naqueles tempos de criança. Talvez os pedaços da minha vida que deixei no Lar da Misericórdia. Talvez a lembrança dos nossos almoços no restaurante “Fonte da Vila”. Talvez o toque dos sinos e a luz do campanário. Talvez a água dos chafarizes. Talvez as lágrimas e os sorrisos que só nos teus olhos vi. Talvez a magia do xisto nas ruas e no adro da igreja matriz. Ou a voz do vento e do passado nos ciprestes esguios. Talvez tudo, talvez nada. Em passadas largas, visíveis e invisíveis, aproxima-se o fim da aldeia. A morte bateu de novo à porta dos Calvos, no dia 6 de julho, e levou-nos o Ti Zé Maria. Pessoa de bem, pessoa especial que todos estimavam. Não esqueço as suas histórias da França, as suas conversas muito vivas e engraçadas, nas palavras e nos gestos. Não esqueço aquele abraço chorado que demos em momentos bem tristes e amargos. Somos assim… Que há-de a gente fazer…

Coimbra, Julho de 2022 

COMENTÁRIOS

JMarques
à muito tempo atrás
Tudo o que é simples e lindo e grande.
O que prende são fios invisíveis, como os da internet móvel.
Maria Beatriz
à muito tempo atrás
Para além do teor de índole pessoal , nas crónicas, o autor deve incluir, de vez em quando o seu conhecimento que deposita do seu lugar de catedrático. O Doutor é um ser facetado , não fique só nas suas leiras e nas cotovias.... Peço desculpa se sou atrevida.....