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Digressões Interiores: Que mundo este! Sigo na estrada…

João Lourenço Roque - 03/11/2022 - 8:00

Outonal me sinto, conforme alguém me disse. Passaram as vindimas. Não tardam aí as provas do vinho novo que o meu irmão...

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Crónica de novembro de 2022

Outonal me sinto, conforme alguém me disse. Passaram as vindimas. Não tardam aí as provas do vinho novo que o meu irmão, sempre apegado aos mimos e fadigas da terra, ainda fez e que eu já deixei de fazer porque a vida me cansou e eu da vida me cansei. Recolheu-se a natureza nas cores e nas folhas caídas do outono, até à renovação e ao fulgor das primaveras que vierem. Na tristeza silenciosa dos vinhedos desolados, amarelecidos, e das árvores quase despidas, mais entristecem os meus dias em tudo o que ainda resta na aldeia. Então mais me apetece e conforta sair dos caminhos velhos, entrar no verde dos pinhais e caminhar sobre a caruma molhada e suave, suavemente recolhido nas minhas emoções e nos meus pensamentos, insistentes ou movediços. Na sombra de sombras antigas. Outono. Outubro. Oito. Dia de mensagem tocante e de abraço amigo da Miquelina e do Alexandre. Por sinal, dia de sol. Dia claro, bom para olhar a natureza tingida e seguir o voo das andorinhas, ao partirem para as lonjuras de onde vieram guiadas pelas estrelas.

Por mais voltas que o mundo e a vida deem, por mais tempestades e mistérios que a qualquer momento sobre nós desabem, nem tudo o vento varre e leva. Nem tudo as nuvens cinzentas e trovejadas escondem ou apagam. Há imagens, histórias e palavras que perduram nos livros e na memória. Palavras de esperança ou de desespero, palavras tristes ou alegres que variam consoante a cultura, a sensibilidade e as circunstâncias existenciais. Quem viaja e vive no tempo lento, nos sentimentos e nas palavras, tarde ou cedo saberá quais lhe soam ou parecem mais tristes. Antes que perguntes, dir-te-ei hoje apenas as seguintes, algumas delas, além de tristes, duras e agressivas: abandonada, abandonado, adeus, aflição, aflito, caixão, cipreste, crisântemo, desamparados, desenganada, desenganado, desnorteado, despedida, desterrados, ditadura, doente, dor, enterro, escombros, escrava, esquecimento, fim, fome, geada, guerra, holocausto, idosos, injustiça, inquisição, João, lar, medo, melancolia, mendiga, morrer, morte, nada, não, noite, novembro, órfã, órfão, outono, peste, pobreza, refugiados, repressão, reprimidas, ruínas, saudade, sede, sepultura, só, solidão, tortura, tristeza, velhos, véu, violência, viúva. Palavras isoladas mas que, com frequência, se arrastam e cruzam. Qualquer uma serviria como ponto de partida para construir ou recordar histórias e narrativas dramáticas, pessoais ou colectivas. Se me lembro de “lar” e “idosos”, logo imagino quanto a vida nos empurra e leva para onde não queríamos ou não pensávamos. Nos Calvos, o caso mais recente terá sido o do Ti João Mendes, coagido ou aconselhado a trocar o torrão natal e as colinas soalheiras pela Santa Casa da Misericórdia de Castelo Branco. Agora que deixámos de o ver nas ruas e nas horas da aldeia, mais valor damos às suas conversas e cantorias. Desde que nos faltou, mais sentimos a sua falta. Nós e os seus gatos que bem tratava e que boa companhia lhe faziam…Assim é a vida tão sofrida e acabada…Sofrem as pessoas e os animais, inocentes e desnorteados. Deixo este “mundo pequeno” e vou pelo “mundo todo”. Se penso em “véu”, logo desfilam cenas de mulheres iranianas, reprimidas e violentadas pela “polícia da moralidade”… Que tempos estes em que, a par de tantos progressos e admiráveis novidades, persistem ou ressurgem tamanhos atrasos e retrocessos civilizacionais! Que tempos estes em que sobrevivem ou reaparecem líderes políticos e religiosos que agridem e envergonham a humanidade! Falei de mulheres iranianas, mas poderia falar das mulheres afegãs e de tantas outras, espalhadas pelo mundo fora, vítimas de iniquidades, violências e atropelos diversos. Sem esquecer os homens, sobretudo os jovens. Tantos jovens, atirados para a guerra, para o ódio e para a morte. Que mundo este, ainda à mercê de fanatismos e tiranias de ditadores sinistros que impedem os “povos” de viver, em paz e liberdade. Há nomes que me chocam só de os ouvir ou dizer… Agora, principalmente Putin. Do seu “amigo” Berlusconi e de outros “amigos” nem vale a pena falar…

Queira ou não queira, torno sempre às meadas da minha vida, opaca e transparente, e aos meandros da minha alma. Se desperto a “saudade”, desperto Coimbra e recordações sem fim. Confesso, uma e outra vez, que gostei de ser professor, quase a vida inteira. Há muito afastado – afastado para sempre – das devoções universitárias, ainda não esqueci os corredores, as bibliotecas, os anfiteatros, os gabinetes e os bares da Faculdade. Nunca me despedi dos meus alunos, cujas peregrinações e carreiras desconheço. Vezes sem conta, penso neles e em mim mas parece que já tudo se apagou. Salvo alguns episódios mais marcantes e alguns nomes e olhares femininos, mais próximos e comunicativos ou mais enigmáticos, vagos e distantes. Não sei o que é feito do professor que fui nem dos milhares de alunos que tive. Há muito que nos desencontrámos, naquele adeus que nos teus olhos havia. Sempre que me aproximo do passado e avisto a torre da universidade ou o campanário de Sarzedas, mais me doem os olhos e o coração. Não sei como lês e classificas as minhas palavras, simples e vagabundas. Pouco importa, através delas sigo na estrada à tua procura…Nada mais atraente que a perfeição do teu corpo imperfeito. Nada mais fascinante que a luz dos teus olhos negros ou a água dos teus olhos verdes. Nada mais belo que o teu rosto emoldurado de longos cabelos, livres, soltos. À tua procura, sigo na estrada…ainda que não saiba onde a estrada começa e acaba.

 

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