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Digressões Interiores: Saudades da Beira, oh és tão linda

João Lourenço Roque - 06/12/2022 - 15:08

Há pessoas que, por tudo e por nada, alcançam fama e proveito nos “palcos mediáticos”. Outras – e tantas conheço -, por mais que lidem e se distingam, nunca saem do esquecimento.

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Há pessoas que, por tudo e por nada, alcançam fama e proveito nos “palcos mediáticos”. Outras – e tantas conheço -, por mais que lidem e se distingam, nunca saem do esquecimento. Para não invocar quem sossegado ou indiferente está, falarei de mim próprio. Encerrada a vida maior na universidade, tive que descobrir e abraçar outras vidas bem longínquas e diferentes. Dediquei-me à agricultura, à pastorícia e à apanha de frutos silvestres. Ganhei nome no vinho, no azeite, nos tortulhos e nas melancias. Inseri-me o mais possível nos territórios e horizontes da minha infância. Embrenhei-me na observação e na defesa da vida selvagem. Empenhei-me na preservação das tradições comunitárias e no alindamento da aldeia através de diversos melhoramentos garantidos pelos poderes autárquicos. Fiz parte da mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Sarzedas que concretizou a aspiração de um “lar de idosos” na vila. Mesmo velhote, e sem direito a farda, alistei-me e permaneço na “protecção civil dos Calvos”, alinhando, com os mais novos e capazes, em arriscadas missões e emergências. Reconstruí casas, namoros e sonhos antigos. Plantei árvores, roseiras e esperanças de futuro. Escrevi livros que trazia na alma e na cabeça. Livros que são vozes, ecos e rastos do interior profundo. Atravessei desertos e tormentas que ninguém pode imaginar. Por tudo isto e muito mais, digam lá se eu não era merecedor de aparecer entre os famosos. Espero que não levem a sério as minhas tontices. Em nada me incomoda e carrega o anonimato. O que realmente me pesa e perturba são as agruras que, a cada passo, espreitam e atingem os idosos. Sobretudo os idosos não digitalizados. Se lhes faltam mãos amigas, estão perdidos. Basta pensar no que lhes acontece quando, na boa fé, telefonam para algumas entidades públicas ou privadas a fim de resolverem pequenos ou grandes problemas e dificuldades. Ficam pendurados a ouvir música e anúncios ou sujeitam-se à ladainha de “vozes gravadas” – que repetidamente lhes dizem marque 1, marque 2, marque 3, marque 4… - e a mensagens escritas que os “encaminham” para a internet através de gatafunhos digitais…Pobre de quem é velho e analfabeto como eu! Parece que o mundo anda às avessas. Nas aldeias cruzo-me com pessoas que nada dizem. Na cidade, não há rua em que passe ou esplanada em que me sente sem que alguém me dê a salvação e lance outro sorriso no meu sorriso. Talvez para cortar a tristeza que se lê nos meus olhos e no meu rosto. À margem destes e de outros momentos, passamos a vida a correr, tantas vezes esquecidos de que é a vida que corre. Há corridas que ganhamos ou perdemos, mas uma há que perdemos sempre – a corrida contra o tempo…Adoro dias de sol, mas também gosto de ver “o céu baixar em nuvens mais pertinho de nós”. Embora viciado nas palavras, detesto conversas longas e arrastadas. Fez-me bem aquele diálogo, no Dia de Todos os Santos, à saída da missa na igreja matriz: Olá Rosalina, conto consigo na minha azeitona. Quem me dera, Dr. João, mas como é que eu posso com os achaques que trago neste joelho. Ora, isso logo passa. Deus o ouça e Nossa Senhora da Conceição nos valha. Olhe, nem tenho feito bolos…Deixe lá, o melhor bolo é vê-la. Ai, obrigado Dr. João, sempre gentil e travesso. Adeus Rosalina, já me chamam para o carro, até à próxima…Palavras breves, palavras boas, definidas e indefinidas. Coisas simples, coisas nossas. Ai a Rosalina! Uma das vozes mais belas nas modas da azeitona, nas modas da Beira Baixa que tanto me prendem e acompanham. Em boa hora encontrei e adquiri, recentemente, no Posto de Turismo de Castelo Branco, alguns dos CDs que há muito procurava: “Viola Beiroa”, “Orfeão de Castelo Branco”, “Clássicos de Natal” e “Saudades da Beira” da Orquestra Típica Albicastrense. Não me canso de te ouvir cantar: “O comboio da Beira Baixa/ tem vinte e quatro janelas/ mais abaixo mais acima/ meu amor vai numa delas…”; “Estas casas são caiadas/ Quem seria a caiadeira/ Foi o noivo mais a noiva/ …Quem seria a caiadeira…”; “Raparigas do Fratel/ tão lindas e donairosas…”; “Adeus vila da Idanha/ Senhora do Almurtão/ Adeus Senhora da Graça/ Cá vos deixo o coração…”. Assim era a nossa música, assim era a nossa vida. Assim era a nossa alma. De dia para dia, reconheço cada vez mais que quem nasceu lá por Castelo Branco não é feliz noutra terra… Que pena não saberes ainda que no monte é que eu estou bem, a cantar como a cotovia. Adivinho que não tardarás em perguntar-me pelo Natal e eu sem saber que respostas encontrar. Lembras-te quando cantavas “Adeste Fidelis” e “O Menino está dormindo”? Lembras-te da “noite do caramelo” e da “estrela dos pastores”? Abraça-me, oh és tão linda… Abraça-me em todos os caminhos e cantigas. Em todas as luzes e saudades.

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