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Digressões Interiores: Só regresso a casa à boca da noite

João Lourenço Roque - 06/05/2023 - 8:00

Tentarei na crónica de hoje, referente ao mês de Maio, mês de tantas promessas adiadas ou caídas (...)

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Tentarei na crónica de hoje, referente ao mês de Maio, mês de tantas promessas adiadas ou caídas, seguir o bom conselho de um leitor muito especial, atento e amigo - o meu médico de Castelo Branco (médico excelente e famoso), que me recomendou que aliviasse a tristeza que espalho na minha escrita. Mas duvido que o consiga, porque a tristeza que me prende vem de dentro e de fora, por mais que os meus olhos sorriam. Além disso, porquê “exaltar” a alegria e “censurar” a tristeza? Nem sempre, ou quase nunca, são antagónicas e, em muito do que escrevo, não faltam brincadeiras pegadas. Umas com pouco jeito, outras sem jeito nenhum.

Há coisas que mudam em pouco tempo. De um dia para o outro. Na crónica de Fevereiro apregoei o mel e outras doçuras dos Vilares de Cima. Sem saber que na nossa família haviam reaparecido colmeeiros entusiasmados que já espalharam cortiços pelas abrigadas e soalheiras de antigamente. Que pena, ou azar, não terem apanhado o grande enxame que avistei pousado nos eucaliptos do Lagoeiro…Tão saudoso do mel dos meus pais e dos meus avós, anseio pelas crestas de Julho e pelos favos doirados que a Ana Paula e o Quim já me prometeram. Se falharem, alguém me há-de valer e acudir. Bem sabes que, nos últimos anos, a maior parte dos meus dias são passados nos chamamentos, nos trilhos e nas surpresas da natureza selvagem. Longas e incertas caminhadas, atravessando silêncios e ruídos que, por mais iguais que sejam, sempre me soam e parecem diferentes. Quando não vejo caminhos, os meus passos os abrem sobre a caruma dos pinheiros altos e por entre as papoilas das estevas menos densas e mais baixas. Boa companhia raramente acho, a não ser no voo e no cantar das aves em redor dos ninhos. Mistérios e novidades surgem quando menos se espera. Este ano, nos meses de Fevereiro e Março, estranhei e chocou-me a grande quantidade de pássaros encontrados mortos. Não sei se atingidos por alguma epidemia, por comida envenenada pela crescente utilização de químicos nos espaços e nas actividades agrícolas que ainda restam, pelas alterações climáticas…Quanto a estas, não duvido que interfiram cada vez mais com as rotas e os hábitos das aves migratórias. Dou como exemplo alguns piscos que por todo o lado encontro, definitivamente instalados e afeiçoados a nós. Fico pensativo e encantado, quando de mim tanto se aproximam confiantes e “conversadores”. Fico triste se me lembro daquele que há muitos anos apanhei, marcado com uma anilha da DDR. Sempre que a Primavera chega ou se anuncia, desperta e renova-se milagrosamente a vida. Os campos tornam-se um mar florido e um paraíso de aromas, cores e sons maravilhosos, indiferentes a quem passa e não passa…Saídos das tocas do inverno, aparecem bichos atrás de bichos. Alguns me alegram e divertem, outros me assustam e arrepiam por tão repelentes serem ou me parecerem. Especialmente as cobras que sempre detestei, fundado em imagens e em razões instintivas e culturais, próximas ou longínquas. Admiro e protejo a natureza, mas não contem comigo para engraçar e lidar com cobras…

Que seria de mim sem os caminhos que invento e caminho! Enquanto caminho, desdobro-me e falo comigo ou solto lindas canções que trago na memória e nos ouvidos: “…Os teus olhos, negros negros/ são gentios, são gentios da Guiné/ Ai da Guiné, por serem negros/ gentios por não ter fé…”. Se me canso ou mais perturbado me sinto, sento-me ao sol ou à sombra, ao colo e no baloiço de outros olhares e pensamentos. Ali fico, por longos ou curtos instantes, à espera de tudo sem nada esperar. Pode ser que, por acaso ou destino, algum dia ainda venhas procurar-me e ensinar-me novamente onde ficavam as fontes da nossa sede e dos nossos amores. Ou levantar os ventos que nos trigais corriam e colher as espigas do nosso pão…Se vieres, põe flores silvestres nas tranças dos teus cabelos, orienta-te pelo cantar das rolas, chama-me de longe e diz o teu nome, porque, de tão habituado a não ver ninguém, o mais certo seria tomar-te por pessoa estranha e esconder-me no meio do mato ou em qualquer pinheiro ramalhudo. Pareço um monge descrente que fugiu do mosteiro ou um professor exilado, à procura de outras sabedorias e meditações nas iluminuras, nos livros e códigos da natureza. Ou no chão e nas profecias da vida. É bom, muito bom, andar no monte, porque no monte é que eu estou bem… Melhor seria sem os sustos que apanho…Javalis não faltam, mesmo que não os aviste bem os pressinto, escondidos ou em correrias nos matagais. Os veados andam perto. Os lobos longe andarão, segundo garantem os observadores; mas quase jurava que de lobo eram os uivos prolongados que, muito recentemente, até mim chegaram, vindos das lombas da Taberna Seca, do monte do “Malhado” e da ribeira da Líria. Que seria de mim sem os caminhos e as fantasias que caminho, nas clareiras do sol e da imaginação. Só regresso a casa à boca da noite ou já noite adentro, a tempo de perguntar às estrelas que céu iluminava o teu rosto iluminado…Regresso, na esperança de voltar. Amanhã, quem sabe, gostaria que me levasses contigo à ermida onde rezas e cantas: “Nossa Senhora d’Orada/ À vossa porta batendo…”.

COMENTÁRIOS

JMarques
No ano passado
Tanto mais maravilhoso e deslumbrante, porque que me identifico.
Beatriz
No ano passado
Uma apreciação sobre a natureza envolvente ,estimulante a um passeio bem sentido. Parabéns.

Ana Paula Roque
No ano passado
…. “As abrigadas e soalheiras de antigamente…” os mesmos cortiços , o mesmo chão… mas não as mesmas pessoas…. embora ainda sinta a sua presença naquele lugar… hoje quase encoberto pelos pinheiros enormes e mato que teima em não nos deixar chegar à clareira de outros amores….
Este amor de sempre… há de cumprir a promessa que lhe fez… por enquanto vamos deliciando nos com as digressões interiores de um Homem fantástico… tio de Coimbra.
M. S.
No ano passado
Mais uma crónica maravilhosa e encantadora, que bem ilustra o mês de maio e a natureza de que o autor tanto fala e de que tanto gosta, só quem frequentou as altas esferas da universidade de Coimbra, " Sua Universidade " e tem uma sensebilidade e uma inteligência acima da média assim sabe escrever. . .Lindissima crónica Obrigada SR. PROFESSOR DOUTOR JOÃO LOURENÇO ROQUE