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Digressões Interiores: Somos assim em terras da Beira Baixa.

João Lourenço Roque - 02/03/2022 - 17:30

Não entendo porque ainda esperam e insistem em que fale do 30 de Janeiro (...) e a estrondosa e inesperada vitória absoluta do PS.

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João Lourenço Roque

Pouco ou nada interessado em figurar como comentador, não entendo porque ainda esperam e insistem em que fale do 30 de Janeiro. Salvo o que ainda não disseram ou não querem dizer, já tudo foi dito sobre a estrondosa e inesperada vitória absoluta do PS. Vitória assente em inquestionáveis méritos, talentos e habilidades das hostes socialistas, mas também bastante facilitada por clamorosos erros e enganos dos derrotados, que teimaram em desculpar-se com "culpas alheias". Houve até quem "culpasse o povo". Ao perdedor principal, nem o "Zé Albino" valeu. É o que dá "caçar com gato"; ir na “roda” ou no “jogo” dos adversários; confiar em sondagens dúbias ou "manhosas" e, sem ideias e personalidades mobilizadoras, acreditar em alternativas e "milagres políticos". À margem, por mera simpatia ou solidariedade democrática, lamento o descalabro do CDS, um dos "históricos" da democracia em Portugal. Perante o novo e inesperado quadro político e parlamentar, logo irromperam os pedidos ao Presidente da República para que seja "vigilante" e "fiscalizador". Por mim, atrever-me-ia a pedir-lhe, embora com pouca ou nenhuma convicção, que modere a permanente atracção pelos microfones e pelas câmaras das televisões...

Não tenho emenda, apesar de bem avisado. A contragosto e levianamente entro por “terrenos alheios". Razão tinha quem dizia: "Quem não é da corneta não se meta". Retomo as incursões pelas áreas e narrativas mais simples e comuns. À espera de algum proveito, mas sobretudo de distracção, sempre que posso entrego-me, como bem sabes, a pequenas fainas agrícolas. Já comprei o "Borda d' Água", em Castelo Branco, para não andar sempre ó tio ó tio para saber de luas e finamentos. A geada, que tantas noites branqueou, deu-me cabo do pequeno faval que tão vistoso e prometedor chegou a estar. Tive que repetir a sementeira nos finais de Janeiro, altura em que também semeei um largo canteiro de batatas. Entretanto vou preparando alguns terrenos, libertando-os de ervas daninhas e de outros "mofedos", na mira das próximas culturas. A par disso, cuidei de outros afazeres. Fui, em dias seguidos, à Barroca do Cavalo, nas encostas do rio Ocreza, cortar os rebentos e ajeitar a rama da poda das oliveiras. Nem parece trabalho de um antigo e cansado professor: coloquei-a em montinhos e mais montinhos, fora das árvores, seguros e acalcados com grossas pedras. Faltou arrancar o mato, mas, com o terreno tão seco e duro, só Deus sabe quando será… Talvez nunca mais… Em tais jornadas não avistei ninguém. Senti-me como se estivesse sozinho no mundo, na companhia dos pássaros - também eles cada vez mais raros nos olivais -, que nem sei o que me dizem ou querem dizer quando se aproximam e cantam em meu redor. Chego a pensar que se apercebem da solidão e da tristeza em que a minha vida caiu. Dia a dia, mais vazia e esvaziada.

Na aldeia e nas hortas faço pelas coisas, à minha maneira e segundo os meus ritmos e vagares. Além do que vou tendo, inúmeras e bem gostosas são as ofertas de vizinhos e familiares que me presenteiam com vinho, pão, queijos, ovos, cabeças e grelos de nabo, doces, sacadas de tangeras, tangerinas e marroquinas. A única fruta que por agora compro são bananas da Madeira ou peras e maçãs de Alcongosta. Se ainda estivesse ao serviço, arriscava-me a que me cortassem o “subsídio de refeição” … Embora sujeitando-me a passar por injusto, esquecendo quem não devia esquecer, manifesto desta vez a minha gratidão ao meu irmão e à Otília, à Idalina e ao Rafael, à Natália e ao Artur, ao João Filipe e à Lucília, à Piedade e ao Manuel, à Rosalina. De muito me valem e muito me dizem as suas generosas dádivas alimentares, nas quais vislumbro e leio, para além da dimensão física, uma expressiva carga de espiritualidade. Gestos e sinais ainda mais tocantes e mais simbólicos encontro eu nas flores e orações que alguém silenciosamente deixa nas campas dos meus filhos no cemitério de Sarzedas. Somos assim, e muito mais, em terras da Beira Baixa. É bom, é urgente manter e reinventar as tradições, o humanismo e os laços de comunidade. Não sei porquê lembrei-me das moças do meu tempo e dos cantares da Rosalina, em especial a Senhora do Almortão. Lembrei-me do talentoso jovem albicastrense, Rodrigo Lourenço, que, em recente concurso da RTP1, se tornou a “nova voz de Portugal” … Somos assim em Castelo Branco, neste interior em que cantamos e choramos. E pelo mundo fora, onde abundam exemplos de egoísmo e indiferença atrozes, mas também múltiplos e tocantes sinais de comunhão e de fraternidade. Fiquei impressionado com o testemunho de fervor humano, religioso e comunitário em Marrocos por ocasião da tragédia que levou o infeliz Rayan. Também eu me comovi com o dramático desenlace. Sempre que acontecem tragédias idênticas, fico a pensar e a interrogar-me, mesmo sabendo que nunca alcançarei resposta: porque morrem as crianças, porque perdemos os filhos?

Regresso a um dos assuntos da crónica anterior: a “colónia de corvos” ambientada entre as Teixugueiras e a Lomba Chã. Salto de mistério em mistério. Mal dei a notícia no “Reconquista”, debandaram dali quase por completo. Talvez por temerem a reaparição da raposa da fábula ou a vinda de turistas aos magotes. Ao certo ninguém sabe, mas há quem garanta que, mais cedo que tarde, os corvos barulhentos hão-de voltar. Fiquei espantado com estas aves, vestidas de preto como eu, mais ainda com as pessoas que não entenderam o que eu disse – ou queria dizer - sobre o “paraíso” do Monte Muro…

No dia 11 de Fevereiro, em Coimbra, chegou-me aos olhos e às mãos o novo livro das Digressões Interiores, dedicado ao João Filipe. Demorei-me nas belas palavras da contracapa. Demorei-me na capa, no meu nome e na vida parada que tanto corre. Imaginei-me a entrar na casa dos meus padrinhos, agora pertencente à prima Ilda. Entrei na casa onde nasci e no silêncio que escorre das paredes nuas e das vozes apagadas ou ausentes. Deixei o livro e engendrei um “poema” desajeitado que vai no mesmo sentido e que talvez ninguém entenda: Não sei de onde vinhas quando vieste/ dizer-me além te encontrei/ além onde não estavas/ Depois partiste naquele adeus que em mim deixaste/ naquele adeus tão breve e triste que em mim ficou.

Há coincidências ou acasos estranhos que dão que pensar. Desta vez não havia mensagens – julgava eu -, mas há sempre alguém que me surpreende e acompanha. Hoje mesmo (domingo, 13 de Fevereiro), de novo ao findar da crónica, esta mensagem “anónima” que, a meio da manhã, de Castelo Branco veio:” Afinal não chove. Só nevoeiram saudades”.

 

COMENTÁRIOS

JMarques
à muito tempo atrás
Se me é permitido, um pequeno reparo:
A atração do PR pelos microfones e pelas câmaras das televisões não é permanente, é ao sabor das conveniências, porque quando não dá jeito, foge delas como o diabo da cruz.
Maria Beatriz Menezes
à muito tempo atrás
Como acontece várias vezes, o ponto alto da sua intervenção consiste na sua vida pela terra de origem, seus vizinhos calorosos, suas saudades e tristezas bem legítimas e , breves. Um retrato bem narrado e sentido. O resto vem por acréscimo. Vive nova vida e sente-se bem ...