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Digressões Interiores: Tardes breves infinitas

João Lourenço Roque - 02/09/2022 - 13:00

Mal, muito mal, vai o mundo que nos mostram e escondem. Ou que nós próprios escondemos nos mantos do comodismo e da indiferença.

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Mal, muito mal, vai o mundo que nos mostram e escondem. Ou que nós próprios escondemos nos mantos do comodismo e da indiferença. Revoltam-me tantas desgraças,

Injustiças e atrocidades, mas de pouco ou nada vale a minha voz. O tempo tudo traz e tudo leva. Adorava o mês de Agosto que tão estranho e triste se tornou. Por mais gente que venha despertar e “reconstruir” a aldeia, em ninguém me reconheço desde que me faltaste. Dizem palavras que já não entendo ou que soam a nada, repetem histórias que perderam o sentido.

Quanto mais riem, brincam e conversam, mais só me vejo e sinto. Mais me afasto e corro para a saudade dos teus abraços. Ou mais paro e fico na recordação de quem éramos e deixámos de ser. Passamos a vida a partir e a regressar. Agora já não sei aonde voltar. Todos os dias parto até partir. Todos os dias me ausento e escondo no amor que guardei.

As cigarras ainda não se calaram e anunciam-se novas ondas de calor, mas já corre para o fim outro verão. Secaram há muito as águas das nossas fontes. Perdeu-se o canto das rolas, das toutinegras e das cotovias. Perderam-se os passeios de mãos dadas. Perderam-se as tardes e os murmúrios que deixámos à beira dos nossos rios e dos nossos mares. Perderam-se os sons do piano na sala grande da tua casa. Na aldeia me demoro, da aldeia fujo. Sempre que posso procuro outros caminhos e refúgios e renovo velhas tentações. Mesmo quieto, andarilho me invento. Talvez por isso, vezes sem conta viajo nos “cantares do andarilho” de José Afonso. Se vou a Castelo Branco, não espero nem imagino pequenas ou grandes surpresas, mas nunca se sabe. Ainda recentemente, ao entrar, como de costume, no “café das Tílias” para tomar o habitual “descafeinado”, bem surpreso fiquei quando o dono – sempre simpático e atencioso – me disse: “deixaram aqui isto para si…”. Ao tocar no embrulho logo dei conta tratar-se de um livro que, na pressa das minhas mãos, aos meus olhos de imediato se revelou: “O Infinito num Junco”, de Irene Vallejo. Livro “admirável” e “genial”, segundo já ouvira dizer e comentar, que poderá trazer-me de volta o entusiasmo pela leitura… Quem assim me surpreendeu e chamou é mistério que tenciono guardar nos arquivos de “jovem professor” e nos enredos de Coimbra. Coimbra, ontem, Coimbra sempre… Ai Coimbra! Quase choro só de dizer. Choro mesmo, se de Lisboa me lembro na expressão dos teus olhos tristes, quando tão triste disseste: “Ai o Tejo…”.

Nas ruas de Castelo Branco, não é difícil meter conversa. Parece que toda a gente se conhece e gosta de perguntar. Mas há perguntas a que não sabemos ou não queremos responder. Então, viramos costas ou mudamos de “filosofia” e fazemos de conta que estamos na aldeia. Grande mania ou afronta a minha! Raras são as crónicas em que não fale do Vale dos Cavalos… Talvez para reavivar imagens e pedaços da infância. Talvez por sentir cada vez mais quão importante seria redescobrir e retomar a ligação à terra. Ligação física e espiritual ao “chão sagrado” que melhor nos identifica, aproxima e humaniza. Que mais direi ainda do Vale dos Cavalos e dos trabalhos e cuidados que a horta me deu? Quase nada, a não ser que valeu bem a pena, tal a abundância de frutos puros e saborosos. Que regalo a água e a doçura das melancias e o encanto da tua companhia! Se não gostasse tanto de dar, bem poderia concorrer a um posto de venda à beira da estrada ou nas festas da região. Boas e gentis as palavras do vizinho Maak, que adora “watermelon”, quando agradece e diz: “you are very kind and a great farmer…”. Amanhã, ninguém sabe que viagens e destinos tomarei. Talvez as praias vazias e os rastos da nossa paixão. Talvez Coimbra… Ai Coimbra! Nos teus olhos e segredos… Tardes breves, infinitas.

Com a crónica já encerrada, chegou-nos uma triste notícia, no dia 18 de Agosto. Morreu a Ti Angelina que nos deixou mais sós, desencontrados e entristecidos. Ao evocar a sua memória, recordo que sempre se deu muito bem com os meus pais. Partiu um mês e alguns dias depois do marido, o Ti Zé Maria (de quem falei na crónica anterior), certamente ao seu encontro e da filha, a saudosa Noémia que tanto amavam. Nem sei que mais dizer, faltam-me todas as palavras. Apenas silêncios, caídos dentro e fora de mim. Mágoas passadas que não passam…

 

COMENTÁRIOS

Maria Beatriz
No ano passado
A narração cheia de motivos emotivos, não foge à regra dos problemas vividos pelo Dr. Está integrado no seu meio natural disfrutando dos seus vizinhos e noutros. Sentindo-se bem, a vida é bem vivida. Continue assim!!!!! O estilo Sempre de ouro-----