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Digressões Interiores: Vai-te embora passarinho...

João Lourenço Roque - 19/10/2023 - 9:52

Quem me lê ou escuta bem sabe quanto eu defendo e exalto a qualidade de vida nas aldeias deste interior profundo, tão falado e desconhecido.

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Quem me lê ou escuta bem sabe quanto eu defendo e exalto a qualidade de vida nas aldeias deste interior profundo, tão falado e desconhecido. Mas, no verão de 2023, em muitas ocasiões me apeteceu ser do contra e gritar em voz alta e prolongada - abaixo as aldeias..., afrontado com a praga, assustadora e agressiva, de moscas, pulgas, carraças, melgas. Que falta nos fazem os morcegos que dantes voavam toda a noite nas ruas, quase rente ao chão, em busca de alimento, dizimando “mchânos” e outros pequenos insectos. Éramos crianças e tentávamos atrapalhá-los, com um pau nas mãos e a gritar: ó morcego, toma lá sebo... Brincadeiras de brincar, difíceis de entender! Desapareceram de vez, com a destruição do habitat e dos seus abrigos em tocas de sobreiros e de outras árvores seculares. E eu, sem culpa nenhuma nestas e em outras “alterações ambientais”, é que as pago com ferroadas e mais ferroadas que deixam marcas no corpo e nos sentidos. Bem sei que as cidades não estão livres destes flagelos e incómodos, mas nada que se compare. 
Apesar dos referidos “suplícios”, continuo a gostar do verão. Mais gostava antes daquele dramático Agosto de 2006... Bem sei que o calor aqui aperta, amolenga e, em velhos, nos deita abaixo no corpo e no juízo. Mas há coisas e sensações únicas: os sabores da fruta doce e sumarenta (sobretudo as melancias), a aragem suave e aconchegante das manhãs e dos fins de tarde, a água viva das regas a correr nos olhos e nas valas da horta, as boas sestas na loja da casa do sobrado. Tardes longas que dão para tudo, até para “ouvir” aquilo que há muito já não se ouve. Infelizmente, por aqui, mais hoje mais amanhã, tudo ou quase tudo se perde ou apaga. Também por isso, tantas vezes me apetece fugir para a cidade e gritar novamente - abaixo as aldeias...Então mais me valem e confortam pequenos gestos e sinais, conversas simples e encontros repetidos ou inesperados. Coisas e acasos que levantam e espalham paz, autenticidade, esperança, luz, num mundo tantas vezes desesperante, sombrio, desgovernado, “falso” e cruel. Lembro as dádivas generosas de parentes e amigos. Lembro aquele “Olá!” da inglesa Victoria (que recentemente adquiriu uma “quinta” na rua principal), na linda e invulgar “carta de apresentação” dirigida a todos os vizinhos. Lembro alguns diálogos ou desconcertos com o Manuel Ventura, ou da Ti Lourença, tão amigo de rir e de filosofar. Diálogos de pastor ocasional ou de filósofo permanente, ele que é duplamente formado em Filosofia - na Universidade de Lisboa e na “escola da vida”, além de instruído em Teologia no Seminário. Diálogos raros, porque aparece e desaparece, quase sempre aquartelado em Almada. Nos tempos da pandemia, avistei-o de manhã a cortar mato, creio que para a cama das cabras. No meio da minha saudação que ainda iria no ar, logo me atirou: “Estou aqui, a ver se consigo cortar o coronavírus...”. Em Agosto deste ano passou por mim, no caminho das eiras, feito pastor. Palavras poucas que já era ou parecia tarde. Desconheço onde caiu ou para onde voou o “enigma” ou a “sentença” que largou: “... Com esta idade ainda não sei o que vim cá fazer...” Apressado na pressa da cabrada, julgo que não me ouviu dizer-lhe: Deixa lá, Manuel, ninguém sabe mesmo quando acreditamos saber... Palavras vãs, as minhas! Palavras perdidas no chão poeirento e nas passadas do Manuel atrás do rebanho. Fiquei ali no meu destino, nos meus pensamentos e olhares. Ao vê-lo afastar-se, mais me pareceu um “nómada” ou um “peregrino” dos séculos passados e futuros... Longa, apagada e misteriosa é a história dos Calvos. Quem seria o mestre pedreiro, arquitecto do xisto e do barro, que deixou a sua marca naquelas datas esculpidas em pedra: 1787, 1887, 1891... Seria gente daqui ou “gente do mundo?” - perguntei ao José Paulo e ao João Filipe, guardadores destas e de outras relíquias. Hesitaram e divergiram na resposta. Talvez a Ana Paula e o Quim saibam. Outros tempos e outras gentes virão. Nos dias de hoje, já mal sabemos onde passa e corre o rio. Fico espantado e saudoso quando aparecem casais jovens e crianças. Nem sei se é “milagre” ou “alucinação”. Milagre seria trazeres de volta as suaves e arrastadas cantigas de embalar: Vai-te embora passarinho/ deixa a borda do loureiro/ deixa dormir o menino/ que está no sono primeiro... óó, óó, óó... 


João Lourenço Roque

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