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Digressões Interiores: Volto sempre a Castelo Branco

João Lourenço Roque - 12/01/2023 - 10:50

Antes de entrar nas palavras e nos caminhos do costume, registo uma palavra de singela e sentida homenagem à Rainha Isabel II e ao Presidente Mikhail Gorbatchov que, em planos e de modos distintos, marcaram a história contemporânea e o mundo. Pode dizer-se que, com a sua morte, morreu também em definitivo o século XX.

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Antes de entrar nas palavras e nos caminhos do costume, registo uma palavra de singela e sentida homenagem à Rainha Isabel II e ao Presidente Mikhail Gorbatchov que, em planos e de modos distintos, marcaram a história contemporânea e o mundo. Pode dizer-se que, com a sua morte, morreu também em definitivo o século XX.
Nem tu sabes quanto eu gosto da cidade de Castelo Branco e da Beira Baixa que profundamente tocaram os princípios da minha vida. Ali criei sonhos e raízes que só o tempo e o esquecimento desvaneceram. Ali, tantas vezes te encontro e reconheço nas coisas mais simples e passageiras e nas conversas mais íntimas ou banais. Ali fui feliz, mesmo sem saber, muito antes das tempestades que surgiram nos meus destinos e caminhos. Agora que mais solitário e nómada me tornei, continuo apegado àqueles territórios e às pessoas que por lá encontro ou deixei de encontrar. Em Coimbra me quero e demoro, mas volto sempre a Castelo Branco na ilusão, estranha e fechada, de que ainda sou quem há muito deixei de ser. Em Castelo Branco parece que nada me falta, mesmo quando me falta tudo. Ali todos os dias são iguais e diferentes. Por entre monotonias e silêncios sem fim, descubro – ou julgo descobrir – vozes, histórias e cantares que me levantam e acompanham nas veredas e tonalidades do outono. Longa e breve, quase passada, vai a minha vida. Quase sempre longe e fora de Castelo Branco, mas, em todos os sítios e em todas as crónicas e paixões por onde andei, nunca escondi o contentamento e o orgulho de ser e de me confessar beirão e albicastrense. Pena, este clima tão destemperado e agreste! Ou talvez não, porque, afinal, o calor e o frio excessivos, colados ao corpo e à alma, moldaram, em boa parte, as nossas energias e a nossa identidade física, cultural e mental.
Nos meus livros me escondo e anuncio em narrativas emocionais. Nas palavras me deito e levanto, ensimesmado em desejos, quimeras, desgostos e recordações. Há tempos sonhei com a cidade e com as aldeias de antigamente. Sonho bem estranho! Mais que sonho, pesadelo… Ao romper da madrugada e ao cantar dos galos, ouvi chamar nas ruas dos Calvos e meti-me no rancho de gente moça e adulta – mais mulheres que homens – que, por montes e vales até à estrada na Taberna Seca, ia a pé ao mercado das segundas-feiras em Castelo Branco. Sem nada para vender, lá fui de mãos a abanar, atrás ou à frente de quem levava carregos diversos: ovos, galinhas, hortaliça, laranjas, “pedras de linho”, mel e outros géneros mais. Todos aviaram a vida conforme puderam ou entenderam, só eu dei passadas em vão porque não encontrei os livros e as músicas que procurava nem mulheres que me lessem a sina. Novamente “à pata”, pelos mesmos percursos, alaridos e sinais, voltámos a casa, à boca da noite, quando os pastores regressavam com as cabradas e as mulheres casadas preparavam a ceia ou davam o peito às crianças de colo. Já deitados, alguns velhotes, que passaram o dia a dar à torneira do pipo, a refilar e a “jogar à bisca”, continuavam a tossir e a lamuriar-se por causa do catarro e das dores nas “cruzes”. Algumas mulheres de idade incerta, mas bastante engelhadas no rosto e na alma, vestidas de preto carregado, rezavam e dormitavam nos cantos da casa ou junto às chamas e ao fumo das lareiras. A malta da escola “fazia os deveres” à pressa, para se entregar a correrias, brincadeiras e zaragatas. Entretanto, acendeu-se um mar de luz com o céu tão limpo e estrelado como nunca se vira. Nas ruas, passavam os últimos moleiros, com bestas carregadas de taleigos, e vultos sombrios com lanternas e candeeiros enfarruscados ou com tabuleiros de pão acabado de cozer no forno comunitário. De súbito, ouviram-se trovões, uivos, gritos e choradeiras que ninguém sabia de onde vinham. Nos altos céus, uma a uma apagaram-se todas as estrelas. Bandos de aves noturnas, semelhantes a anjos e demónios das trevas ou a fantasmas do além, pousaram nos telhados. Senti-me e fiquei só, confuso e amedrontado como nunca. Agarrei-me ao teu retrato e chorei como uma criança perdida, ao dar-me conta de que a aldeia e todos os meus sonhos juvenis haviam desaparecido na escuridão e nas águas turbulentas do rio… Desconheço o resto da história, mas imagino que tudo se terá alterado logo que a estrela d’alva surgiu de novo no horizonte. Em mim mudou quando me achei, em setembro passado, na solene procissão pelas ruas da vila de Sarzedas, naquele domingo de festa da paróquia e de celebração da Natividade da Virgem. Nos meus passos inseguros e nos sons comoventes da banda filarmónica senti que caminhavam comigo, trazidos por mim não sei de onde, todos os meus familiares mais queridos e tantas gerações desaparecidas. 
Nem tu sabes quanto eu gostava de Castelo Branco. Agora, sempre que lá vou, mais me custa passar na avenida do liceu e junto ao hospital ou entrar nos restaurantes que tanto nos agradavam. Vou e venho só, carregado de compras, cansaços e emoções. Nunca mais voltei ao mercado… Nas pequenas e boas lojas ou nos grandes centros comerciais encontro tudo aquilo de que preciso. Tudo, menos as gorras que dantes usava e os “discos” que boa companhia me fariam nas longas viagens de carro. Parece mentira, mas em Castelo Branco – cidade tão moderna e progressiva – não há quem venda música! E nas aldeias, raros são os que ainda cantam: “Nossa Senhora da Póvoa…” ou “Senhora do Almurtão/ eu pró ano não prometo/ que me morreu um amor/ ando vestida de preto…” Quem me dera ouvir-te cantar e cantar contigo “quando eu era pequenino/ acabado de nascer…” Espanta-me e inquieta-me a minha maneira de ser e de sentir. Aos primeiros versos, fico logo emocionado e com os olhos rasos de lágrimas. Sou assim, já não espero nem desejo mudar. Esteja onde estiver, volto sempre aos teus olhos e a Castelo Branco.

João Lourenço Roque

COMENTÁRIOS

Francisco Gonçalves
No ano passado
Uma bela dissertação e que só quem viveu como nós esses tempos, na aldeia e na cidade, e passou a sua juventude cá por Castelo Branco, sabe saborear este texto.
Abraço ao João Lourenço por trazer até nós essas vivências.
JMarques
No ano passado
Como me revejo!
Maria Beatriz
No ano passado
Gostei do teu texto, mais uma vez vives o passado e adoras a tua aldeia, o mundo beirão , no seu todo , centrado em Castelo Branco.
Tens sempre uma explanação agradável , uma emotividade aliada . Parabéns,