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Leitores: Visões de uma criança em Oleiros no ano de 1649

Eduardo Duarte - 17/11/2022 - 10:15

Por ser, julgamos, um documento manuscrito inédito, divulgamos o texto de um acontecimento passado em Oleiros, no ano de 1649, no contexto das profecias e visões, que constituem uma vasta e interessante literatura de caráter sebastianista.

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Por ser, julgamos, um documento manuscrito inédito, divulgamos o texto de um acontecimento passado em Oleiros, no ano de 1649, no contexto das profecias e visões, que constituem uma vasta e interessante literatura de caráter sebastianista, que tinha como objetivo, entre outras questões, fazer a apologia da Revolução do 1.º de Dezembro de 1640 e da nova e legítima casa reinante portuguesa: a dinastia de Bragança, na pessoa do rei D. João IV, como se sabe, anteriormente duque de Bragança, que substituiu o período dos Filipes. O facto de a visão ter ocorrido em Oleiros torna-se ainda mais relevante por ser uma vila da Beira-Baixa, que, como toda a província, tantas vezes tem sido esquecida pela historiografia. 
O texto faz parte de um conjunto de relatos de profecias e visões de santos, religiosos e pessoas comuns que constituem uma parte do Códice 551, pertencente aos Reservados da Biblioteca Nacional de Portugal, fl. 140 v.º e 141, com o título de: Vizoins / De huma Mossa no lugar de Oleyros / anno de 1649. 
Por questões práticas, atualizamos a grafia e a pontuação; mantivemos, evidentemente, a construção das frases e acrescentámos duas palavras, entre parênteses retos, para melhor compreensão do texto: 
“Visões de uma moça no lugar de Oleiros, ano de 1649.
Que sendo de 8 anos vira em o seu quintal, um palácio grandioso, donde vira muita gente de guarnição, aqueles disseram, era um Rei que ali estava havia 400 anos, e lhe pediram não dissesse nada, que ela tinha sustentado o segredo 4 anos, e que lhe tinham dito o descobrisse, porque vinha chegando o tempo de aparecer, e que haviam [de] receber água do Batismo e que estavam na mesma idade do que eram há 400 anos. E que vira um Frade Mariano, que diziam lhe ensinava a doutrina Cristã, e que os via pôr de joelhos as Ave Marias, e trazer contas nas mãos. E disseram à moça estavam esperando outra gente que haviam de vir com eles, e que tudo era para bem de Portugal e lhes pedisse missas e orações para que os tirasse Deus dali.
E sendo filha de pais nobres, começou o pai da moça a dizer à filha que o tinha desonrado, por dizerem todos [que] era feiticeira, e que pedisse a Deus lhe aclarasse aquilo, para que ela, nem ele, perecessem na reputação e honra.
A rapariga se foi a um Menino Jesus que tinha em casa, do tempo de sua mãe, a pedir-lhe que não padecesse sua honra. No mesmo tempo, começou o Menino Deus a suar com grande abundância, aonde acudiu o vigário-geral do Crato e todo o povo. E suando o Menino Jesus em 24 horas 9 vezes, de tal forma que se ensoparam lenços e logo foi levado para a Igreja aonde ainda hoje está. 
Autenticado tudo, o vigário-geral pondo excomunhão à moça, para que não falasse com gente daquela terra. Fim.”   
A pequena narrativa é interessante, pois a menina de 8 anos da vila de Oleiros, de família nobre, teve uma visão de um grande palácio com um rei e uma corte que aí estavam havia 400 anos. A data, alude, talvez, à formação de Portugal, mais concretamente à conquista do Algarve e talvez a D. Afonso III. Mas 400 anos é, antes de mais, um arco cronológico simbólico mais vasto que deve remeter para o próprio nascimento do reino de Portugal e para D. Afonso Henriques, no século XII. Neste caso, 400 poderá estar também próximo da importante simbologia bíblica do número 40. Na verdade, 40 anos seria um número diminuto para o rei e reino de Portugal que habitava o grande palácio, da visão que a criança experienciou. 
A circunstância de a menina ser descendente de pais nobres parece dar maior consistência e verdade à visão e, concomitantemente, relacionar a nobreza com a Revolução de 1640, em que os nobres foram, como se sabe, os grandes protagonistas. 
Quando é referido que a rapariga manteve o segredo por 4 anos, até 1653, o ano parece ser coincidente com as Cortes, datadas de 22 de outubro, que juraram o (mais tarde infeliz) rei D. Afonso VI, por morte do primogénito de D. João IV, D. Teodósio. Recorde-se que, nesse mesmo ano, ocorreu igualmente um dos mais importantes conflitos da Guerra da Restauração: a batalha de Arronches, em 8 de novembro. 
Evidentemente as visões, mesmo nacionalistas e favoráveis ao poder legítimo, além dos aspetos ligadas à verdade, eram objeto de desconfiança e de inevitáveis suspeitas de feitiçaria, como revela a presente história. Neste caso, a intervenção divina manifestou-se através de uma imagem do Menino Jesus que, milagrosamente, suou e revelou a autenticidade da visão da moça. Igualmente, o facto de a imagem ter suado, em 24 horas, 9 vezes significa que se manifestou 3 vezes 3, número ligado à Santíssima Trindade e, como se sabe, sagrado na iconografia cristã. Outras referências nesta narrativa ao Batismo, a um frade mariano e à oração da Ave Maria testemunham e corroboram a origem divina e a presença de Maria Santíssima na nova dinastia de Bragança e na Revolução de 1640.  
No fim da história, encontramos a intervenção do vigário-geral do Crato, pois Oleiros, na época, como grande parte da Beira-Baixa, pertencia à Ordem do Hospital (Ordem de Malta) cuja sede era na vila do Crato.  
Mas, talvez o aspeto mais interessante, em termos políticos, é quando se subentende, através da visão, que um novo rei viria (na verdade, já estava no trono desde 1640), se esperava “outra gente” “e que tudo era para bem de Portugal”. 
Claro que não é fácil, nem sequer, talvez, legítimo, tentar interpretar ou explicar racionalmente uma visão de alguém no século XVII ou de outra qualquer época… contudo, quantas vezes não suspiramos, todos nós, por outra gente para o bem de Portugal?

 

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