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Juncal do Campo: Pastores e rebanhos 2

Joaquim P. de Matos - 08/09/2022 - 10:18

No seguimento do tema desenvolvido anteriormente legamos ainda aos nossos leitores a riqueza dos usos e costumes da vida pastoril tradicional.

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No seguimento do tema desenvolvido anteriormente legamos ainda aos nossos leitores a riqueza dos usos e costumes da vida pastoril tradicional.
As crias na impossibilidade de mamarem durante a noite iniciava-se a época da ordenha e os pastores de mangas arregaçadas, por vezes com a frieza da lã molhada, ordenhavam cautelosamente para não magoarem as tetas e facilitar a extração do leite para o ”percheiro”. 
O leite era “coado” para um pote de lata adicionando-se o “coalho”. 
Havia quem coagulasse com a flor do cardo seco ou com o estômago do cordeiro desidratado antes de se alimentar com ervas.
Uma vez a massa “coalhada” colocava-se nos acinchos e apertava-se sobre a francela enquanto o soro escorria através de um pano para um recipiente. 
Iniciava-se o ciclo de curtimento do queijo de forma que a sua qualidade fosse apreciada.
A par disto era hábito dizerem que “o queijo tira a memória.”
O soro após uma leve cozedura chamava-se “requeijão” e adicionando-lhe “sopas” de pão substituía muitas vezes uma refeição.
Nas festas anuais ou casamentos era um dos principais ingredientes na confeção de tigeladas ou arroz doce.
Na gastronomia era habitual confecionar os maranhos, a fressura e a carne de borrego assada no forno.
Na primavera a tosquia era feita manualmente, pelos pastores, com uma tesoura específica que libertava a lã do corpo do animal para ser comercializada através de intermediários que a faziam chegar às fábricas de fiação.
Competia muitas vezes ao guardador de ovelhas assisti-las na saúde ou ferimentos.
Em pequenos cortes durante a tosquia aplicavam por vezes o pó de carvão moído até cicatrizar.
Nas feridas maiores untavam com azeite para evitar que as moscas poisassem.
Para tratar as infeções dos olhos, provocadas pelo toque das pontas do “restolho” ou de ervas secas, introduziam na vista afetada a parte branca, bem moída, do excremento de lagarto.
Quando os animais perdiam o sentido de orientação ou ficassem “estonteadas”, na tentativa de as curar e talvez por sugestão supersticiosa, queimavam arruda e davam-lhes o fumo a cheirar. 
Quando as ovelhas comiam plantas venenosas davam-lhes água turva do barro virgem para vomitar ou desintoxicar.
Quando uma ovelha partia alguma perna por qualquer circunstância, envolvia-se com talas de varas de esteva atadas com as fitas de casca do trovisco.
Outra particularidade era marcar as ovelhas de um pastor ou proprietário com um sinal, geralmente um pequeno corte numa orelha, para as diferenciar dos outros rebanhos quando por acaso se juntavam.
No calor de verão e com os pastos secos os pastores aproximavam os rebanhos nos pontos de água.
Quando secavam as “tcharcas” nos ribeiros, abasteciam-se com a água dos poços e, por vezes, transportavam-na em “caldeiros” até junto das ovelhas.
Para que o precioso líquido não vazasse, devido às oscilações, colocavam folhas de figueira a boiar no cimo. 
Também observar o tamanho e a orientação da própria sombra, ao sol, sabiam as horas durante o dia.
Os pastores ao chegar o inverno protegiam-se da chuva e do frio com “samarras” e “safões” confecionados por eles com a pele dos animais seus amigos.
Para aconchegar a merenda usavam ao ombro “sarrões” executados com a pele dos cordeiros ou cabritos.
Se todas as atividades rurais eram dignas, à de pastor, acrescia-se ainda a criatividade na execução de objetos artesanais.
A canivete esculpiam em madeira “badalos” para os chocalhos e “trasgas” para ligar as coleiras talhadas e executadas em cabedal de couro.
Também no pau de carapeteiro, cortado em finais do outono, escavavam “cotcharras” para comerem as “sopas de leite”.
Também retiravam a cortiça nas proeminências dos troncos dos sobreiros para realizarem os “coutchos” e beberem água nas fontes.
A par da arte pastoril evidenciam-se algumas vivências no  “dia a dia”.
No verão observar a bruma matinal no horizonte e sentir a brisa vinda de leste previa-se imenso calor à tarde.
 Era durante a tremulina escaldante nas tardes de verão que os pastores dormitavam à hora da sesta e as ovelhas “acarravam” nas sombras das árvores.
Em Juncal diziam que “a água da ribeira também dorme na hora da sesta”.
Ouvir os sons difusos dos chocalhos, sentir o sufoco com a leveza da poeira no ar que as ovelhas elevavam do chão com as patas e observar a translucidez das formas através da luz solarenga no final das tardes quentes recriava-se um cenário pictórico.
Por outro lado, no inverno, debaixo de um guarda chuva a pingar, com o frio tocado pelo vento contra as faces e observar o rasto das botas ou patas das ovelhas moldadas na lama revelavam a dureza dos sacrifícios numa atividade digna para levar o leite a muitas crianças ou o sabor do queijo às famílias.
Com as vivências da minha juventude procuro contribuir para o conhecimento do património etnográfico da nossa terra, legando aos filhos de juncalenses ou investigadores o que a minha mente preserva.
Com a pastorícia tradicional quase extinta surgem as memórias e uma lágrima que brilha na cultura tradicional do nosso povo.
Recordar não é só viver. É também amar.

Notas “acarravam” – descansavam à sombra; “badalos” – peça de madeira suspensa no interior dos chocalhos; “coado” – filtrado;  “coalhada” – coagulada; “coalho” – coagulante; “cotcharras” – colheres toscas de pau; “coutchos” – recipientes de cortiça com pega; “estonteadas” – com desequilíbrios; - “percheiro” – vasilha larga de lata com crivo; “restolho” – caules dos cereais ceifados; “safões” – pele para proteger as pernas; “samarras” – pele para proteger as costas; - “sarrão” - bolsa de pele, mochila; “sopas” – pedacitos de pão; “tchoças” – cabanas; “trasgas” – pequena tranca ou cruzeta para fixar a coleira.

 

COMENTÁRIOS

JMarques
à muito tempo atrás
Quem assim escreve, sabe da poda. Como me identifico..
Ser pastor neste tempo é muito mais que ser pastor, é ser mestre em todas as artes e saberes.