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Leitores: A propósito da invocação de Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo

Maria Adelaide Salvado - 03/06/2022 - 10:01

O VIII Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo/II Cruzeiro Ibérico do Tejo

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Inúmeras são as invocações à Virgem Maria na terra portuguesa. Santa Maria lhe chamaram os cavaleiros Templários e sob a sua proteção colocaram os seus castelos dedicando-lhe capelas e igrejas. Nossa Senhora foi o nome moldado pelos ideais da cavalaria que, a partir da Idade Média, lhe foi atribuído. Ao inventariar as advocações que pontuam o território de Portugal e ao constatar a sua enorme e, por vezes, singela e estranha diversidade, escreveu o padre Jacinto dos Reis, em 1967: «O português de tudo se serve para invocar Nossa Senhora (…)». E esclarece que algumas reproduzem lugares e acontecimentos miraculosos tomando o nome de povoações, de campos ou de sítios ermos; outras evocam as graças que a envolvem como Mãe de Cristo ou relembram as vivências alegres ou dolorosas que marcaram a sua vida terrena; outras ainda traduzem a esperança do seu auxílio em situações de perigo que tecem o quotidiano da fugacidade da vida. No entanto, nenhuma das antigas e tradicionais invocações marianas portuguesas possui uma carga tão diversa de motivações e intencionalidades como a de Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo. Nesta invocação, surgida em 2012, entrelaçam-se motivações de desenvolvimento turístico com preocupações ecológicas e culturais focalizadas, fundamentalmente, na defesa e na salvaguarda do riquíssimo património de comunidades de pescadores originários de Vieira de Leiria que, a partir da segunda metade do século XX, se fixaram nas margens do Tejo. Pescadores migrantes, repartindo a sua vida entre Vieira de Leiria, onde passavam o Verão e o Tejo onde viviam de Outubro a Junho, atraídos pela rentável pesca do sável. Famílias numerosas de cinco, sete, oito, nove filhos viviam no tempo da migração em pequenas embarcações: os saveiros. Nestes barcos, com 6,60 metros de comprimento, por 1, 60 de largura, o espaço era diminuto. Dividido em três partes: oficina (onde se guardavam as redes e os apetrechos da pesca), a cozinha, a meio, e o quarto à proa, constituíam a sua habitação durante os meses de Verão. Cozinhava-se em fogareiro de petróleo que se encaixava em armações de madeira, rodeadas de tachos e alguidares. E um colchão que, de dia e conjuntamente com as mantas se enrolava no vão da proa, era o único elemento do quarto. Para protecção do sol e da chuva ou para criar uma maior intimidade, cobria-se esta parte do barco com um toldo de pano-cru que, artesanalmente, se impermeabilizava com uma mistura de óleo de linhaça e tinta secante, e que se suspendia de um arco de madeira flexível fixado por argolas presas às partes laterais do saveiro. Avieiros ou “ciganos do Tejo” lhe chamaram as gentes da Borda-d’água. Numa época em que os caminhos do Tejo eram tecidos de angústias e de incertezas, pois às intempéries e aos perigos ditados pelo caudal caprichoso do rio e pelas irregularidades do leito, aliava-se a injustiças dos homens. Por isso revoltas surdas nasciam por entre as águas do rio. Nesse tempo, era perigoso denunciar a fome, perigoso questionar os elevados impostos de algumas redes ou as taxas cobradas pela ocupação do espaço aos barcos ancorados. Neste contexto, era natural que pedidos de auxílio à Virgem Maria fossem usuais. Implorava-se simplesmente a Nossa Senhora, sem invocação especial, a protecção da vida e o pão de cada dia, e não a Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, como vários jornais um dia noticiaram «(…) todas estas comunidades sempre tiveram um grande fervor religioso, devotas da Senhora dos Avieiros e do Tejo».

Não existia essa invocação. Cada povoação ribeirinha, cada comunidade ou cada grupo profissional que tirava do Tejo a sua sobrevivência colocava-se sob o amparo de um santo ou da Virgem nas usuais invocações da terra a que pertencia. Sirva de exemplo o caso de Vila Velha de Ródão onde Nossa Senhora do Castelo era a protetora dos barqueiros que asseguravam a ligação entre as duas margens do rio ou dos que estabeleciam as ligações entre a Beira Baixa e Lisboa, transportando pessoas e mercadorias: «A Senhora do Castelo/ Está virada para Abrantes./Está dizendo venha, venha, / Sou a mãe dos navegantes», ou a quadra recolhida em Vila Franca de Xira por Alves Redol dirigida ao Senhor da Boa Morte, de grande devoção nesta povoação ribeirinha: «Ó barqueiro atraca, atraca,/ ó barqueiro atraca o bote; era pr’a ir e não fui/ ao Senhor da Boa Morte.» O mundo mudou mas essa milenar via de civilização que foi o Tejo, com a ainda, embora diminuída, biodiversidade que povoa as suas águas, a beleza natural das suas praias e dos seus mouchões, a originalidade dos viveres das aldeias avieiras que sobreviveram ao tempo foi pretexto para a criação de um cruzeiro religioso e cultural, que cumprirá em 2022 a sua VIII edição. O elo de ligação encontrado pelos promotores deste evento para unir as diferentes comunidades ribeirinhas, foi a secular devoção à Virgem Maria, a Mãe de Deus e Mãe dos homens, que neste nosso secularizado e desencantado tempo continua a fervilhar intensamente no coração do povo. Elo de ligação forte e de louvar.

No entanto, convirá esclarecer que a invocação de Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo não é antiga nem tradicional entre as comunidades que viviam nas margens do grande rio regrador de esperanças que é o Tejo. É este o objetivo desta nota. E certo é que as tradições se inventam e a mutação cultural é constante. Como será importante, nestes tempos carregados de desânimos e interrogações, de confinamentos, que devolvamos aos territórios o seu sentido espiritual, realidade determinante para correta apreensão e redescoberta da identidade cultural da Beira Baixa. A realização em Malpica do Tejo de um seminário, aberto a todos, sobre o culto Mariano e o Tejo poderá ser um dos alicerces que fortifique e reforce este novo itinerário de sentido e de sentir que une o Ribatejo à Beira.

 

Geógrafa. Autora da monografia “Os Avieiros nos finais da década de 50”.

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