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Leitores: E se mudássemos o paradigma das feiras municipais?

Anselmo Cunha - 17/08/2023 - 8:50

Seria suposto que o principal e central objetivo de uma feira municipal fosse o de funcionar como oportunidade para a promoção dos seus recursos.

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Parece estar instituído um padrão no figurino das feiras organizadas pelos municípios portugueses. Sob a capa da promoção e divulgação dos recursos endógenos e da dinamização económica, feira municipal que se preze tem de ter um cartaz chamativo, com predominância na área da música dita “popular”. Numa analogia forçada, não será completamente despropositada a ideia de que estaremos perante uma espécie de campeonato em que ganha o município que conseguir contratar para a sua feira, os nomes mais sonantes da música (maioritariamente portuguesa mas também estrangeira), sendo que o principal indicador de sucesso é o número de pessoas que se juntam no recinto a assistir ao espetáculo.

Seria suposto que o principal e central objetivo de uma feira municipal fosse o de funcionar como oportunidade para a promoção dos seus recursos, sejam eles tangíveis ou intangíveis, isto é, como alavanca de desenvolvimento do território e das suas populações. Todavia, o modelo adotado pela esmagadora maioria dos autarcas na organização das suas feiras municipais obedece a um figurino que gira em torno desse elemento (algo) perverso que é a exibição de artista famoso. O resultado é que, quando a feira é transfigurada num festival de música à moda urbana, em muito semelhante a um qualquer festival de verão profusamente disseminados por este país, tudo o resto acaba secundarizado, sendo que nesse “resto” está incluída a dinamização económica assente na promoção dos produtos endógenos.

A compreensão da consolidação deste paradigma pode ser conseguida em vários planos de análise. Vejamos telegraficamente três deles.

Desde logo, no plano político, existirá uma perceção, presumivelmente partilhada por todos os responsáveis autárquicos, de que este tipo de eventos contribui para a mediatização e projeção do concelho e, na boleia, para a sua própria imagem enquanto político.

Depois, no plano, digamos, psicossociológico, a resposta dos cidadãos parece ser bastante satisfatória dada a adesão que se verifica. O que parece atrair as pessoas à feira não é a gastronomia, o artesanato, a cultura locais. O que verdadeiramente parece influenciar a sua decisão é mesmo o artista de dimensão nacional/internacional que lá vai dar concerto.

Um terceiro plano de análise remete para o impacto na economia local, no pressuposto de que ao investimento público utilizado para se realizar a feira corresponde um retorno, o que, convenhamos, não é linear que suceda na maior parte dos casos.

A questão que se coloca é, então, a da sustentabilidade deste paradigma. Seria fácil responder se dispuséssemos de uma fórmula de cálculo mais ou menos consolidada. Não temos. Provavelmente, porque a sua complexidade deriva, desde logo, da necessidade de nela incluir variáveis intangíveis de difícil, se não mesmo impossível, quantificação. Refiram-se duas, para ilustrar a ideia: a primeira sobre a forma a utilizar para calcular os propalados efeitos na imagem do município; a segunda, sobre como medir os custos de oportunidade.

Para já, podemos, e devemos, refletir sobre os problemas do atual, e sobre as presumíveis virtualidades de um paradigma alternativo.

Invocam-se – para início de debate - três princípios basilares para a sua construção.

Primeiro. O princípio da responsabilidade (íntimo daquele que é o mais transversal de todos os princípios: o da ética), decisivo para a consciente, sensata e correta avaliação sobre os efeitos mediáticos para a imagem do concelho que são atribuídos a uma feira centrada em concertos musicais significativamente dispendiosos para o erário público. Na verdade, é questionável que a mediatização do concelho seja mais conseguida pelo facto de numa determinada noite lá tenha dado um concerto um determinado artista de renome, do que pelos seus aprazíveis e bem apresentados espaços de lazer, pelos seus produtos de qualidade, pela sua gastronomia, pelas suas tradições, pelo seu património, etc., cuja divulgação pode sempre ser feita através de outros meios, igualmente eficazes mas menos dispendiosos.

Num paradigma alternativo, o sentido de responsabilidade (e ético) estará também na opção de não ceder à tentação de canalizar recursos públicos para a promoção da imagem individual, até porque, as supostas vantagens políticas são residuais, se se considerar que a esmagadora maioria dos cidadãos que assiste aos concertos nem sequer são eleitores no município.

Segundo. O princípio da proporcionalidade, refletido na adequação entre os recursos e características do município, e a dimensão e estrutura da feira. As escolhas sobredimensionadas face aos recursos e às condições disponíveis e mobilizáveis geram inevitavelmente um desequilíbrio, patente na previsível incapacidade de resposta adequada face a um momentâneo, mas significativo acréscimo das procuras, associadas à concentração excecional de pessoas, como sejam as questões de segurança, de assistência, de acomodação, etc. As estruturas de apoio público disponíveis no território estão dimensionadas para a procura “normal”, por referência às especificidades demográficas. geográficas, orográficas, etc., sendo que algumas delas serão mesmo deficitárias (aponte-se a saúde ou a justiça, como exemplos mais frequentes). Numa situação excecional, o imprescindível reforço dessas estruturas, ainda que provisoria e pontualmente, para acudir a episódios excecionais, impõe uma complexidade organizativa e de articulação que acarreta consideráveis custos de contexto.

Num paradigma alternativo, a albarda faz-se à medida do asinino, como dita sabiamente o povo ou, recorrendo a outro ditado, o passo não pode ser maior do que a perna. O arrojo de ir além dessa medida é salutar mas, salvaguardado o dito princípio da proporcionalidade.

Finalmente, terceiro, o princípio da racionalidade, que remete para o dever assacado a qualquer decisor público de tomar as decisões que resultem mais eficientes para o interesse coletivo. Ou seja, enquanto administrador do bem público, ele terá de fazer uma gestão que persiga o máximo proveito dos recursos públicos à sua disposição. No caso da feira municipal, impõe-se a racionalidade adequada à aferição do retorno expectável face ao investimento aplicado. Aceita-se que os festivais de música moderna produzem um impacto positivo nas reputações dos locais onde têm lugar, por via do reforço das autoestimas dos habitantes locais, e, claro, por via da sua imagem externa e efeitos no turismo. Todavia, óbvias e razoáveis dúvidas são suscitadas na questão de aferir se a mobilização de uma significativa fatia de recursos públicos para um cartaz “atrativo” possa ser correspondido por um retorno claramente vantajoso para o concelho, seja qual for a dimensão considerada.

Num paradigma alternativo o cartaz da feira municipal não será tão ambicioso, atrativo e chamativo. Pois não. Não haveria aquela promoção do concelho que satisfaz aquele ego coletivo dos habitantes locais; não proporcionaria aquela projeção da imagem do autarca mor; não permitiria o mesmo número de visitantes do concelho naquela noite; mas o “negócio” não seria tão ruinoso para o erário público.

Um paradigma alternativo, no global, teria de conter elementos de resistência à festivalização da cultura, do artesanato, das tradições, dos talentos, dos produtos locais. Precisaria, a montante, do planeamento concertado de produção de bens – de valor económico e simbólico – e de uma assertiva e mobilizadora articulação na sua (menos barulhenta) divulgação.

A implementação de um paradigma alternativo resultaria de uma outra perspetiva do desenvolvimento dos territórios rurais, não tanto em torno do eixo do turismo – velha e atrativa panaceia –, mas, sem descurar alguns elementos incontornáveis da modernidade, para a afirmação dos seus elementos específicos e diferenciadores. Teria de assumir-se algo disruptivo, discreto mas firme contribuidor na contenção da subjugação acrítica e passiva do mundo rural à cultura urbana.

Toda a Portugália foi dominada pela cultura urbana. Toda? Não é conhecido nenhum município povoado por irredutíveis munícipes que resistam à sua propensão invasora. Mas, se calhar, precisávamos de um.

COMENTÁRIOS

Manuel Borges
No ano passado
Interessante reflecção do que actualmente se passa em todos (?) os municípios
/ aldeias por esse país f ora menosprezando o factor económico. Parece-me um pouco redutor esquecer / diminuir o papel do dinheiro em todas as relações humanas sejam elas comerciais, culturais ou mesmo religiosas. Desde que o homem se emancipou como espécie mais diferenciada / evoluída que o comércio nas suas diferentes vertentes se mantem como "motor" de desenvolvimento. O absurdo da evolução é ter-se diferenciado a "guerra" como negócio lucrativo na sociedade que evolui (?) para a sua preservação e , longevidade. Não que eu discorde da ideia de menores custos para eventos locais, comerciais, gastronómicos ou mesmo culturais mas como demonstrar às pessoas que isso é o correcto quando os exemplos vindos da capital mostram exactamente o contrário ?. Será errado pensar que os grandes investimento do sector público para os eventos mediáticos não é compensado com o retorno através dos impostos?