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Leitores: “Os Lusíadas” foram editados há 450 anos… salvos pela Santa Inquisição.

João Morgado* - 31/03/2022 - 17:31

João Morgado escreve sobre a grande obra da língua portuguesa, uma data que passou praticamente despercebida.

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É talvez o livro mais importante da literatura portuguesa e também, um dos mais repudiados pelos jovens estudantes, obrigado ao estudo das figuras de estilo e às divisões silábicas, sem muitas vezes apreenderem a monumentalidade da obra. E, verdade seja dita, tirando as obrigações académicas, também já ninguém lê Os Lusíadas. Por isso, vão-se repetindo lugares comuns e comprando edições de luxo para decorar as estantes, não (muito) mais que isso. Os 450 anos do lançamento desta obra emblemática da literatura (27 de Março), não teve qualquer celebração oficial no nosso país, apesar de Camões ter direito a um dia nacional.

Sublinhar, que também pouco se sabe de Camões, e a imagem que dele foi sendo construída em livros e filmes, é pouco abonatória da verdade. Mais de que um namoradeiro e espadachim, foi um homem de triste vida, que passou metade da sua vida em prisões e desterros, fruto dos seus erros e da má fortuna. O que não lhe retira valor, pelo contrário, torna ainda mais fantástica a sua verve de poeta a sua memória de elefante, onde reuniu todo o saber da época, da história à mitologia, da geografia à botânica. Os Lusíadas é um compêndio de todos os saberes da época.

Quando dizemos que o português é a língua de Camões, há uma razão de ser. Ele afastou-se claramente dos latinismos, da influência castelhana, harmonizou a grafia, deu-lhe uma alma própria – uma autonomia.

A sua emoção lírica é incomparável – “Erros meus, má fortuna, amor ardente…” -, a sua força épica não tem par – “canto o peito ilustre Lusitano, a quem Neptuno e Marte obedeceram.” Mas, para além de tudo isto, ele era ainda um homem de intervenção social, um influenciador, um político. E, ao contrário de certas figuras, não teve um exílio dourado, muito pelo contrário.

O político d’Os Lusíadas

Os Lusíadas são o grande poema da glória portuguesa. Mas na época foi mais que isso. Para além de um descarado enaltecimento a el-rei D. Sebastião, a obra era também um libelo acusatório contra a degradação moral e política do reino. O poema procurava reerguer a dignidade de Portugal, quando o império se mostrava já falido, perdido em guerras, enredado nas garras de uma nobreza corrupta…

E porque é que um livro com objectivos tão patrióticos, suscitou tantas perseguições? Tantas inimizades?

Ora, acontece que, ao cantar as glórias de outrora, mostrava as tristezas da época. Aos elevar ao estatuto de deuses os homens de outras eras, por comparação, mostrava a pequenez dos que detinham os poderes no seu tempo.

Mais que um poema, Os Lusíadas apresentaram-se como um verdadeiro livro ideológico, onde, por exemplo, Camões se apresentou áspero com os jesuítas a quem acusa de serem uns usurpadores do nome de Jesus e esquecidos do seu papel de sal da terra e apóstolos da fé.

“…E vós outros que os nomes usurpais

De mandados de Deus, como Tomé,

Dizei: se sois mandados, como estais

Sem irdes a prègar a santa Fé?

Olhai que, se sois Sal e vos danais

Na pátria, onde profeta ninguém é,

Com que se salgarão em nossos dias

(Infiéis deixo) tantas heresias?…”

Mas, também aponta o dedo acusatório à nobreza decadente que ele bem conhecera nas Índias, esquecida que estava dos valores cavaleirescos e totalmente rendida aos interesses mercantis. Era a crítica mordaz a uma sociedade de novos-ricos, usurários e bandalhos, que gozavam do beneplácito dos governantes e dos religiosos que, cuidando de emendar o mundo, não se emendavam a si próprios.

“… ó vós que as famas estimais,

Se quiserdes no mundo ser tamanhos,

Despertai já do sono do ócio ignavo,

Que o ânimo, de livre, faz escravo.

E ponde na cobiça um freio duro,

E na ambição também, que indignamente

Tomais mil vezes, e no torpe e escuro

Vício da tirania infame e urgente;

Porque essas honras vãs, esse ouro puro,

Verdadeiro valor não dão à gente:

Melhor é merecê-los sem os ter,

Que possuí-los sem os merecer.…”

João Morgado com uma das primeiras edições do livro, que se encontra no Brasil. Foto cedida pelo autor.

O escritor com uma das primeiras edições da obra de Camões, que se encontra no Brasil. Foto cedida pelo próprio.

A poesia épica apresenta-se como guardiã da história, cinge o heroico e o belo, dignificando a memória e libertando da morte os maiores da pátria. Os Lusíadas procuraram assim recuperar o nosso passado glorioso, resgatando também o ideal cavaleiresco que levou à edificação do império. Mas não se escusou de alertar o próprio rei: “guarde-se não seja ainda comido, desses cães que agora ama…”

Ao chamar a atenção para os exemplos gloriosos, para as figuras gradas da história do reino, procurou chamar a atenção d’el-rei para a necessidade de se robustecer o pundonor como povo e a consciência da força de Portugal, minado que estava pela devassidão.

“…Deixas criar às portas o inimigo,

Por ires buscar outro de tão longe,

Por quem se despovoe o Reino antigo,

Se enfraqueça e se vá deitando a longe;

Buscas o incerto e incógnito perigo

Por que a Fama te exalte e te lisonje…”

O reino estava dividido, como sempre. Uns temiam o futuro de Portugal governado por um jovem que dava sinais de doenças várias e, preferiam por isso, entregar-se ao poderoso rei de Castela. Outros defendiam a honra lusitana, e a sua independência a todo custo. Estes últimos viram no poema de Camões uma exaltação pátria, um canto ao valores de outrora, que engrandecia Portugal. Por isso, a edição d’Os Lusíadas veio a público. Interessava politicamente a uma facção da nobreza mais patriótica, assim como, interessava a uma facção do clero, preocupada com a crescente força dos jesuítas — por então, muito próximos à coroa espanhola. Era um livro de poesia, mas, era nas entrelinhas, um livro político – Camões sabia disso. Quem o apoiou também.

Apesar do controverso canto IX, das críticas à nobreza e à igreja, Camões conseguiu a chancela do rei e, o mais importante, a aprovação do tribunal do Santo Ofício. Ao contrário de muitos livros, este foi salvo pela Santa Inquisição, já que o inquisidor-mor, era o cardeal D. Henrique, filho de D. Manuel I. Ou seja, a edição d’Os Lusíadas veio a público há 450 anos porque interessava politicamente à facção da nobreza mais patriótica, assim como interessava a uma facção do clero preocupada com a crescente força dos jesuítas. Temos assim, que é mais que um livro de poesia, é também um livro político.

Escritor e autor da obra “O Livro do Império”, sobre a escrita d’Os Lusíadas

www.joaomorgado.net

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