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Leitores: Sobre “Uma estranha leveza”, de Luís Macedo

Ana Paula Domingues e José António Domingues - 25/05/2023 - 16:46

"Um conjunto de pinturas alicatadas que não podemos deixar de ver como uma resistência à banalidade do mal".

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O artista albicastrense Luís Macedo expõe na Fábrica da Criatividade um conjunto de pinturas alicatadas que não podemos deixar de ver como uma resistência à banalidade do mal, um conceito da filósofa judia Hannah Arendt, que cobriu, em 1961, enquanto jornalista, o julgamento de Adolf Eichmann. Pensar pelos olhos das figuras que falam desse escândalo do extermínio de homens, mulheres e crianças nos campos de concentração nazis (a arte é assim, é golpes de experiência), parece-nos compartilhá-lo, compreendê-lo. O interesse pela exposição pode adquirir uma dimensão mais histórica, política, cultural. Essa dimensão faz-se aliás aqui insistente: invoca a memória, quebra o silêncio, revive o drama e desinquieta. Um desejo de assim resgatar as vítimas inocentes de um silêncio que não está certo, um silêncio que esquece e que se não for interrompido vitimiza pela segunda vez.

Um desejo que a criação em cada azulejo de Luís Macedo materializa nas evidências das formas e a despeito do facto de a arte existir como memória, uma memória própria do inclassificável sofrimento pela aniquilação de culturas, de identidades da comunidade do humano.

Desde o primeiro momento do julgamento que Eichmann se esquiva. A extraordinária normalidade de Eichmann, pai de família, sem más intenções, sem estar possuído por qualquer paixão fanática, são de facto os traços essenciais que se distinguiam. No fundo é uma figura proveniente da administração e da máquina de fabricar cadáveres do regime nazi que lhe impedia que ele dispusesse de um espírito emancipado. Tinha know-how, mas era incapaz de pensar sobre a natureza das consequências das suas funções, incapaz de se deixar afectar e pôr-se no lugar do outro. Eichmann, que com zelo e obediência aos seus superiores engendrou a Solução Final, funcionário de mérito, nunca matou um judeu, nas suas palavras. Nele a consciência jamais poderá reproduzir-se com culpa.

Um humano sempre se encontra no extremo dessa consciência de Eichmann. Ou isso levaria a pensar que por mais que procuremos jamais encontraremos alguém, um rosto, um olhar, uma alma. Ela está completamente envolvida com a capacidade de pensar e de compreender e de corresponder a uma humanidade, à capacidade desta de agir, de ter iniciativa para se ajustar e reconciliar e estar em sintonia e harmonia com a realidade, em relação com outros. Por natureza, é preciso aceitar esse outro. O eu e o outro sempre se aventuram na existência como que unidos por um amor eterno. É por isso que é tão provável falar de mundo comum.

Para observar o fenómeno global da desumanização e da perda de relação constata-se com desagrado que a banalidade do mal ressurge. Nenhum homem hoje nas mesas de negociações internacionais pela sobrevivência alimentar dos povos, nas negociações dos recursos energéticos, pela guerra que destrói os objetivos militares, fala com justeza dos outros. Sobretudo, planifica modos de fabricar a aniquilação.

Ao contrário, a Fábrica da Criatividade associa criatividade, artifício e arte à ideia de fabricação. Nada mais do que o traço de um esforço de integração que Luís Macedo formula a partir das suas peças, o esforço sem o qual não haveria obras de arte. Nesse esforço as obras de arte reflectem um desconforto: não têm utilidade, mas são as mais úteis de todas as coisas tangíveis. De facto, uma exposição de obras de arte inicia uma relação física, de sentir, que privilegia um espectador que em si revive um mundo iniciado pela obra. Ao qual agrada a ideia de que uma obra de arte toma-se por mediadora de alguns movimentos pessoais, sem o que não existiria.

Eis-nos assim como medidas do que da pintura punge, que compulsamos nos códigos presentes, nos arquivos, nas memórias de “Uma estranha leveza”. Luís Macedo procura questioná-la, muito pacientemente. É preciso ver o que ele produziu, dessa emoção de falar daqueles aos quais as obras estão ligadas. Podemos supor que a sua emoção nos coloque em perspectiva com o que os quadros limitam. Parece-nos que as formas das figuras dos quadros descendem da revelação das próprias experiências que recebemos enquanto espectadores. E aquilo que recebemos choca e fere. E se a figura perturba, demoramo-nos diante dela. Que faço durante o tempo que permaneço diante dela? Olho-a, escrutino-a, como se quisesse saber mais sobre a coisa ou a pessoa que ela representa.

 

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Luís Macedo
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