Os fogos continuam a pintar a região de negro
(Estas reflexões ocorreram ao longo dos três dias em que lavrou o incêndio na Serra do Moradal e devem ser lidas como reflexões ao acaso, sem ordenação temática ou crítica. Nasceram do solo da experiência factual e chegaram à palavra pelo sentimento de raiva, revolta e impotência.)
1. Nunca vi nada assim. Suponho que os sentimentos de medo e de impotência só em outras experiências limite da vida humana, como a guerra ou os actos terroristas, podem ser vividos como o são diante de uma catástrofe em vários momentos incontrolável.
2. Pedrógão Grande foi apenas o epicentro de uma desgraça cujas réplicas continuam a repercutir-se nas zonas limítrofes. Não se está sob o efeito de um fenómeno catastrófico natural. Isto é, não estamos perante as forças brutas da Natureza a desviarem-se de tudo o que é regular e previsível cientificamente. Aquilo a que temos assistido, este ano, ilustra na perfeição duas coisas: o esplendor horrível da maldade humana (de que os incendiários são apenas as marionetes) e a incompetência para lidar com fogo em ambiente florestal. Invocar as condições climatéricas adversas, em especial o vento forte, é não assumir o fracasso de estratégias de combate inadequadas e sem um conhecimento profundo do terreno que se pisa. Tudo isso resulta de uma rede complexa de factores que se conjugam harmonicamente na sociedade actual. Uma sociedade à deriva, cuja crise de valores constitui a raiz principal da instabilidade do planeta: ameaças nucleares, terrorismo e, no nosso cantinho, este inferno em escala maior do que a nossa capacidade de suportar a dor, a raiva e a injustiça.
3. Percebi que a organização dos incendiários está mais bem montada do que a de combate a incêndios. E em organização de incendiários incluo as formas de poder que deviam punir severamente os pirómanos em vez de os julgarem como pessoas com desvios patológicos.
4. Percebi algumas das razões por que em Portugal os incêndios de grandes proporções só ficam circunscritos quando na região em que lavram não há mais para arder.
5. Percebi que o comando de operações nos locais de sinistro não ultrapassa a classificação de medíocre. Até há meios, mas não há preparação das chefias nem conhecimento do território.
6. É inconcebível que os comandantes de operações no terreno não sejam da zona do sinistro ou das zonas limítrofes, pessoas que deviam conhecer o terreno como as suas próprias mãos.
7. É inconcebível que esses comandantes não procurem, entre a população local residente, uma pessoa idónea com o mapa de caminhos da região na cabeça para, imediatamente, fazer perceber ao comando as melhores opções de ataque ao incêndio.
8. É inconcebível que os comandos venham para os locais de sinistro sem mapas de caminhos, de cursos e de pontos de água. Nem uma carta militar nem um mapa menos complexo do concelho, da freguesia, nada. Navegam quase à toa, no emaranhado de frentes de fogo e de ausência de estratégias rápidas e enérgicas para o incêndio, quando ainda em fase inicial, não progredir. (Toda essa informação deve existir no comando central, mas onde ela é necessária é no terreno concreto, ali onde se tem de agir sem a mediação das telecomunicações).
9. É inconcebível que as corporações de bombeiros, salvo em casos absolutamente excepcionais, não ataquem o fogo e se limitem a esperá-lo junto das povoações sob a bandeira de salvar bens e pessoas – porque a floresta, nos dias de hoje, parece não ser um bem, quando em muitas civilizações era o maior.
10. É inconcebível que ainda não tenham percebido que a espera dos incêndios no perímetro urbano causa o pânico na população e uma desordem sem nome no posicionamento de meios nas ruas estreitas das aldeias. Além de que é a principal causa, sublinho principal causa, de casas e imóveis (industriais e de recolha de animais) arderem. Trata-se de uma estratégia suicida, que tem de ser revista com a maior urgência.
11. É inconcebível que os Comandantes não se tenham apercebido de que tem de se traçar um anel de segurança à volta das aldeias, cuja distância nunca pode ser inferior a 1 km. E, em vez de dezenas, centenas de bombeiros estarem à espera de o fogo ameaçar, deviam preparar, por todos os meios possíveis (com equipas de populares, militares e outras) o combate às chamas àquela distância (ou outra parecida, conforme os casos a que o relevo obrigue).
12. Por exemplo, no combate às chamas durante dois dias, no Moradal, vi os bombeiros sapadores duas vezes atacar o sinistro de frente (com auxílio de um meio aéreo) e vi os bombeiros atacar o fogo uma vez para o estancar no topo de uma encosta. De resto, foram os populares que enfrentaram o fogo e o combateram. E se as habitações da aldeia de Cardosa não sofreram nenhum dano foi, sobretudo, pela forma como os populares o combateram (com a coragem e o amor pelo que é seu a comandar). Quando, pelas 18h, se atingiu o clímax de pânico e surgiram 3 meios aéreos a combater uma frente, foram os populares que intervieram e abriram, debelaram o fogo e abriram um aceiro. Esse anel de que falei acima conseguiu-se única e exclusivamente graças ao trabalho amador, consolidado depois com aceiros feitos por máquinas de rastro mobilizadas pelo Comando. Tudo feito, repito-o com a maior revolta e tristeza, pelas pessoas e sob o olhar distante dos bombeiros, os quais se limitavam a estacionar os veículos no limite das embocaduras das ruas da povoação, à espera que as chamas chamuscassem as nossas casas para agir (isto porque a ordem superior era esperar pelo fogo na aldeia).
13. Percebi, claramente e com grande tristeza, que não há combate a incêndios na floresta. Espera-se que ela arda até aos limites urbanos (ou até aceiros naturais, como rios, ou aceiros artificiais, como estradas) para aí, sob um frenesim de confusão, a raiar a paranóia, se activarem meios (então aparecem de todos os lados) para salvar o possível e não o desejável. A estratégia resume-se a minimizar os estragos, porque quando aparece um incêndio que tome certas proporções os estragos estão consolidados. Por isso, com tanta frequência se têm visto as chamas chegarem à periferia dos núcleos urbanos totalmente descontroladas, pela simples razão de que não se lhes fez frente longe das empenas dos edifícios.
14. Percebi também que o rescaldo, passada a aflição de se combater e salvar a floresta, é melhor coordenado do que tudo o resto.
15. Não me limito a criticar por criticar. Tenho o maior respeito pela divisa que acompanhou, ainda no século XIX, a fundação da maior parte das corporações de bombeiros em Portugal: “Vida por vida”. Hoje essa divisa está tão ausente do espírito geral das corporações que só em momentos excepcionais desponta. É horrível dizer isto, mas a nossa maior esperança (quem vive no meio da floresta) é o tempo meteorológico. Só a chuva pode acalmar a nossa angústia até ao ano que vem.
16. Porque eu até podia, como a maior parte das pessoas que vivem no mundo rural, aventar aqui meia dúzia de palavras muito feias para o negócio que tudo isto envolve, para as suspeitas das projecções de fogo, para o espectáculo ordinário e fictício dos meios de comunicação social, em geral, e para a hipocrisia política em romaria de condolências. Não o faço por não querer sujar o meu discurso e, se possível, ajudar.
17. Gostava de terminar lembrando a quem de direito quatro medidas absolutamente essenciais a adoptar, se não quisermos repetir, em todos os verões, o annus horribilis de 2017:
a) – Pegar no mapa florestal nacional, na escala da carta militar e, a régua e esquadro, traçar quadriculas de 75, 100, 150 ha de área, de acordo com as condições topográficas (relevo, cursos de água, densidade e tipologia florestal, rede de caminhos, etc.). Tudo feito por uma equipa que junte técnicos de silvicultura, cartografia, engenharia e outros. As quadrículas são separadas por estradões florestais, de 10 ou 15m de largura (ou outras medidas julgadas adequadas para cada local específico), os quais sejam limpos anualmente. É evidente que muitos deles podem aproveitar a rede de caminhos florestais, as estradas municipais e nacionais e os cursos de água.
b)– Pegar no mapa hidrológico nacional, na escala da carta militar, e estudar com o máximo rigor quais os cursos onde se possam criar pontos de retenção de água no mapa florestal anteriormente referido. Estas barragens devem ser ordenadas com a rede de caminhos e com o mapa de quadriculas florestais atrás mencionado. (Como medida adicional, preventiva: patrulhar a floresta, no Verão, por equipas militares.)
c)– Criar um imposto sobre os eucaliptais. Cada pessoa ou entidade que queira plantar, mediante licença camarária, um eucaliptal pague por hectare 50€ (ou outro montante que se julgue justo) para a Liga Portuguesa de Bombeiros ou para as Câmaras Municipais gastarem na prevenção e profilaxia do problema do combate aos incêndios.
d) – Punir com severidade os pirómanos (não os suspeitos), porque a injustiça que praticaram não tem perdão nem devia ter reabilitação social. Eu sou a favor da justiça popular nestes casos. Ou então penas perpétuas, em que os pirómanos deviam de ser obrigados todos os dias do ano (chovesse ou fizesse sol) e até ao fim das vidas deles, a limpar e a cuidar do maior valor do nosso planeta que eles, por maldade, ajudaram a destruir: a floresta.
Só medidas drásticas desta natureza erradicam, de vez, o paraíso em que vivem os criminosos e o inferno em que nós vivemos.
elaborado texto. Quem sou para julgar? Mas sou suficientemente visionário para apresentar sugestões, alvitrando pareceres de fácil aplicação. Ninguém me lê? ...